Portal Brasileiro de Cinema  Depoimento de Rubens Francisco Lucchetti

Depoimento de Rubens Francisco Lucchetti

Concedido a Eugênio Puppo e Arthur Autran em 19 de maio de 2007

Quadrinhos de A praga (1969)
Rubens Francisco Lucchetti

Nasci em Santa Rita do Passa Quatro, cidadezinha no interior de São Paulo, em 29 de janeiro de 1930. Meu pai, Américo Lucchetti, era fotógrafo profissional e trabalhava com fotografias antigas. Ele as conseguia nas fazendas da região e ampliava, fazendo esses quadros ovais para pendurar na sala de visita das pessoas. Às vezes ele pegava também duas pessoas em fotos separadas e colocava na mesma foto. Fazia muita trucagem de fotografia. Meu pai fez até uma ponta num filme feito em Santa Rita, Da terra nasce o ódio (1954). Nós mudamos para São Paulo quando eu tinha 3 anos.

A primeira pessoa que me falou do José Mojica Marins foi o Sérgio Lima, então secretário da Cinemateca Brasileira. Isso aconteceu por volta de 1964. Mas antes do Sérgio me falar do Mojica, eu conheci o Mojica por intermédio do primeiro filme dele, À meia-noite levarei sua alma. Esse filme foi anunciado em Ribeirão Preto, onde eu morava, num cinema que hoje virou igreja. Na época era o maior cinema de lá, uns 2 mil lugares, mas era freqüentado apenas pelo pessoal do bairro, ficava no centro mas meio afastado. Aí eu falei “Quero ver essa fita”, mas não era anunciado o nome do ator, do produtor, do diretor, nada. Quando o filme começou, me deu vontade de sair do cinema. Eu não estava entendendo nada do que estava vendo, eram imagens estranhas, e também havia um personagem esquisito, que fugia da rotina... Mas eu não era de sair de fita alguma, queria ver o que ia acontecer, mas a coisa não acontecia. De repente, comecei a perceber que a fita era esquisita, porque ao mesmo tempo parecia uma peça de um circo e também tinha uma coisa de tragédia shakespeariana. O ator subia, gritava – cheguei até a arrepiar – e depois também caía, num sobe-e-desce. Nunca tinha visto uma coisa daquelas, embora eu assistisse a tudo que era fita naquela época. Terminado o filme, saí meio tonto do cinema, nunca vira nada igual, nem nas sessões da cinemateca, que eu já freqüentava.

Aí recebi em Ribeirão Preto uma carta do Sérgio Lima. Era uma carta escrita a quatro mãos, porque ele escrevia uma parte e a mulher dele, outra; ficou engraçado. Dizia que eu precisava conhecer uma pessoa, que íamos nos dar bem, e o nome da pessoa era José Mojica Marins. A mulher dele afirmava que o Mojica era uma figura extraordinária, que um encontro de nós dois seria delirante. Nesse meio tempo, eu mudei para São Paulo, no fim de 1965. O Sérgio falou: “Vamos marcar um dia para fazer o encontro de você com o Mojica. Vocês vão se dar bem, e ele está precisando de pessoas como você, que gostam de terror”. Naquele tempo, eu já fazia roteiro de histórias em quadrinhos, já havia escrito texto para seriado de rádio – note que o seriado de rádio não era bem a novela de rádio, a linguagem do seriado era quase que a linguagem do cinema transplantada para o rádio.

Então, um dia o Sérgio Lima finalmente marcou. A gente se encontrou ali na avenida São João. Ele apareceu com o Mojica e fomos a uma dessas galerias onde havia casa de chá. Eram quatro horas da tarde, tinha as madames lá, e o Mojica sempre andou muito bem arrumado, era um perfeito gentleman; o Sérgio Lima também era, não sei como eu ficava. E essas três figuras chamaram atenção, afinal estavam lá aquelas senhoras da sociedade, num ambiente com música, parecia um ambiente fúnebre. O Mojica me olhava e não falava, o tempo todo quem falava era mais o Sérgio. Ele estava até meio incomodado porque eu não falava nada e o Mojica não falava nada, um ficava esperando o outro falar. Bom, eu sei que não foi um encontro muito amistoso. Aí me despedi e o Mojica falou: “Olha, eu sei que você mora no Brás, e meu estúdio não é muito longe de lá”. Eu trabalhava numa loja de uns parentes da minha mulher – fui trabalhar lá para poder sair de Ribeirão Preto. Falei para o Mojica que ia num sábado depois do almoço.

Umas duas semanas depois, num sábado por volta das duas horas, eu fui, a pé. Quando cheguei lá, fiquei com medo de entrar. Era uma sinagoga e tinham adaptado aquilo. Devia ter sido uma casa de comércio. Lá dentro tinha um mocinha sentada, era a Nilce. Falei: “Escuta, eu preciso falar com o seu José Mojica”. Ela respondeu: “O seu José Mojica foi num bar aqui perto, não deve demorar”. Aí fiquei esperando. Passa um pouco e aparece o Mojica com mais duas pessoas, que depois fiquei sabendo se- rem o Giorgio Attili e o Augusto de Cervantes. Estava descontraído, não era aquela pessoa fria do primeiro encontro. Ele sentou, começou a bater papo, eu pedi desculpas por ter vindo sem avisar. Ele respondeu: “Não, foi bom você ter vindo hoje, eu estou precisando de um roteirista e o Sérgio Lima falou muito de você”.

Ele tinha recém-terminado Esta noite encarnarei no teu cadáver e precisava de uma pessoa para escrever O estranho mundo de Zé do Caixão. Tinha até o título e, como estava muito em voga filme de três episódios, ele mesmo queria fazer as três histórias, ia ser o diretor das três e numa delas ia trabalhar como ator. Ele falou: “Você faria o roteiro?”. Pô, eu estava esperando isso a vida inteira! Na época eu estava com uns 35 anos, já estava passando meu tempo. “Eu faço.” Aí ele me contou muito sucintamente como seriam as três histórias e perguntou: “Dava para você trazer uma das histórias daqui a uns 20 dias ou até menos?”. Passaram três semanas, levei as três histórias prontas. Ele leu e achou incrível que eu tivesse feito tudo num período tão curto. Pensou que eu estava trazendo uma história e eu já estava levando as três. “É praticamente como se eu tivesse escrito”, ele falou.

O episódio “Ideologia”, eu achei que ia ser o ponto alto do filme, pois acho que eu fui feliz nessa coisa de mostrar que a razão é suplantada pelo instinto, essa filosofia do Oaxiac Odez. Quando o Mojica fez À meia-noite leva- rei sua alma e Esta noite encarnarei no teu cadáver, ele criou um personagem que é como um robô: o Zé do Caixão é obcecado pela idéia da mulher perfeita, ele transita nos filmes fazendo aquela série de maldades gratuitas. Então, nesses dois filmes, o Zé do Caixão não tem alma, ele não tem filosofia de vida, ele é um personagem vazio – eu vejo desse jeito, foi o que me passou quando vi pela primeira vez À meia-noite levarei sua alma. E justamente em O estranho mundo de Zé do Caixão, no episódio “Ideologia”, está ali toda a filosofia dele: a defesa do instinto sobre a razão.

Antes de conhecer o Mojica eu tinha escrito não sei quantos roteiros para cinema, mas sem conhecer a técnica. Eu sou autodidata em tudo, tudo que eu fiz foi por minha conta. Comprava livros e lia, eu lia muito naquela época. Sobre cinema, os primeiros livros que surgiram foram os do Carlos Ortiz, e eu me correspondia com ele. Depois eu fiz amizade também com o B.J. Duarte, que, como o Ortiz, foi crítico das Folhas. Gosto muito da literatura de Edgar Allan Poe, Henry James, Lovecraft, enfim, autores ligados ao fantástico. No cinema, gosto de Hitchcock e Chaplin. Eu sempre imaginei fazer uma homenagem a Charles Chaplin. Aí, em março de 1960, eu fiz uma mostra do Chaplin em Ribeirão Preto. Durou dez dias, foi uma revisão completa da obra dele, houve uma exposição com cem bicos de penas que eu mesmo desenhei do Carlitos em várias posições e que depois saiu em livro. Até o Paulo Emílio Salles Gomes esteve lá para ver. A melhor revista da época, Visão, deu uma matéria, e a Folha publicou vários artigos sobre a mostra. Depois eu ainda fiz em Ribeirão Preto um Festival Sherlock Holmes: foram feitas palestras sobre ele, a BBC mandou um documentário de 45 minutos que foi ao ar na rádio, e também passamos filmes com o personagem.

Segundo as palavras do Mojica, ele não sabe, quando lê, se foi ele que escreveu ou se fui eu. Dos roteiros que fiz para ele, gosto de O estranho mundo de Zé do Caixão, O despertar da besta (Ritual dos sádicos) e Exorcismo negro. Além de Inferno carnal e A estranha hospedaria dos prazeres.

Para o cinema, usei a mesma linguagem que eu usava nos quadrinhos e nos programas de televisão do Zé do Caixão. Na televisão, todos os programas eram escritos por mim, uns 70 episódios de uma hora e pouco. Na TV Bandeirantes você podia passar do tempo, não tinha essa questão de ter exatamente 40 ou 50 minutos. A produção na Bandeirantes era artesanal, a gente arregimentava os alunos da própria escolinha do Mojica. A estrutura era como se os telespectadores mandassem histórias para a gente e a gente adaptasse para a televisão, mas na verdade eram todas originais.

Mas chegou um dia que o Mojica falou assim para mim: “Estou com uma proposta para ir para a Tupi”. Eu disse: “Olha, Mojica, acho que ir para a Tupi não é bom, não é o tipo de coisa que eles querem. Eles não querem esse programa, eles querem uma coisa mais sofisticada”. Porque a Tupi naquela época era como se fosse a Globo de hoje. Aí ele disse: “Ah, mas é o seguinte: nós vamos pegar o público da Bandeirantes e mais

o público da Tupi”. “Mojica, você não está bem lá na Bandeirantes? Então vamos ficar lá”, eu argumentei. “É, mas eu já assinei o contrato”, ele disse. Aí nós fomos para a Tupi, continuei escrevendo os roteiros, mas era o Antônio Abujamra quem dava as diretrizes. Eu gostei do Abujamra, ele que dirigia os programas – que tinham de ter xis laudas, não podia entrar isso ou aquilo. Acho que não era nem censura; na Tupi eles exigiam uma coisa bem profissional. O trabalho com o Mojica era uma coisa mais artesanal, eles entenderam isso na Bandeirantes. Esses seriados eram uma continuação do cinema, os atores não eram profissionais, eram todos da escolinha. Na Bandeirantes, o programa era apresentado como se a história tivesse sido vivida por uma telespectadora. Só que ela estava sempre com o rosto coberto ou era focalizada a sombra dela na parede, para não ser identificada. Quando foi para a Tupi era o contrário: quem contava a história era o Mojica, era ele quem fazia uma apresentação dizendo que tinha pegado a história nos anais secretos dele. Na Bandeirantes o título do programa era Além, muito além do além, e na Tupi era O estranho mundo de Zé do Caixão. Na Tupi era outra linguagem, tinha atores profissionais – tanto que a primeira história chamavase “O açougueiro” e foi interpretada pelo Lima Duarte, que desempenhou muito bem o papel. Mas depois o seriado ficou bem banal, a audiência foi caindo, e o Mojica foi perdendo o público da Bandeirantes e não pegou o da Tupi. Foi uma pena. Hoje não tem registro de mais nada dos seriados, porque naquela época não tinha VHS. As emissoras desmanchavam tudo e, além dis- so, a Tupi pegou fogo.

Não entrava na minha cabeça que uma pessoa pudesse criar um personagem de terror autenticamente brasileiro e ao mesmo tempo universal – e o Mojica criou o Zé do Caixão. O Zé do Caixão é um personagem brasileiro mesmo, mas que todo mundo entende. Olha, os norte-americanos não conseguiram fazer isso com todos aqueles cérebros que trabalham lá; eles não conseguiram criar um personagem norte-americano de terror, porque o Jason do Sexta-feira 13 é ridículo, o Freddy Krueger é rídiculo, o Hallowen é rídiculo. Então os Estados Unidos não têm um bom personagem de terror; quem tem são os europeus, por exemplo, o Drácula. E a criação do Zé do Caixão inseriu o Mojica como cineasta no universo do terror.