Portal Brasileiro de Cinema  Depoimento de George Michel Serkeis

Depoimento de George Michel Serkeis

Concedido a Eugênio Puppo e Arthur Autran em 21 de maio de 2007

O fracasso de um homem em duas noites de núpcias (1972)
George Michel Serkeis no episódio “Tara” de O estranho mundo de Zé do Caixão (1967-68)

Nasci no Egito no dia 1º de outubro de 1944, numa cidade chamada El Mansura. Aqui no Brasil exerço função empresarial, sou também cineasta e jornalista, entre outras coisas.

Eu fazia teatro e cinema lá no Egito. Não era profissional, mas entrava no elenco de teatro profissional como intruso. Também entrei no cinema, mas nele fiz uma atuação pequena, porque saí de lá com 18 anos e não tive tempo para fazer mais. Quando cheguei ao Brasil, eu e o Mojica passamos a ter relação de amizade – em 1966, se não me engano. Naquela época, o Mojica tinha estúdio na rua Casimiro de Abreu, um lugar onde antes tinha sido uma sinagoga. Era lá que ele fazia os testes com atores. Essa rua era travessa da rua Oriente, e eu freqüentava a Oriente porque lá havia pessoas do Egito, Líbano, enfim, pessoas que tinham lojas. O Mojica sempre passava lá, por causa das mulheres dele. Eu o vi na rua com aquelas unhas, aí me informaram que era o cineasta dos filmes de terror e tudo mais. Como ele fazia cinema e eu também, me aproximei mais, passei a cumprimentá-lo, me apresentei e passamos a ter amizade. Eu não falava direito o português, mas deu pra gente se entender e ter uma amizade forte. Ele já tinha feito À meia-noite levarei sua alma e Esta noite encarnarei no teu cadáver, mas eu não participei desses filmes. Também não freqüentei muito a escola do Mojica como aluno, porque eu já era praticamente um profissional na matéria, mas vi- via lá, todo dia a gente se encontrava.

Se o Silvio Santos tem convencimento para vender Baú da Felicidade e TeleSena, o Mojica tinha um poder de convencimento superior: de incentivar a pessoa a fazer cinema e ter coragem. Ele fazia pessoas que nunca tinham feito cinema aparecerem nas fitas como se fossem profissionais. Agora, pega essa pessoa e dá na mão de outro diretor... Jamais este diretor vai conseguir fazer do ator o que o Mojica fez. Ele colocava a pessoa no devido lugar. Também na televisão e fora dela o Mojica promovia os testes. Como na época ele não tinha recursos, então a pessoa tinha de pular de um ou dois andares e não tinha colchão embaixo para amolecer a queda; o cara tinha de pular mesmo. Os testes chamavam muito a atenção da imprensa.

Em O estranho mundo de Zé do Caixão, eu trabalhei como ator no episódio “Tara”. Também fui produtor da fita. Além disso, do Mojica, eu produzi O despertar da besta (Ritual dos sádicos) e Finis Hominis. Atuei, dirigi e produzi O fracasso de um homem em duas noites de núpcias (1972) e dirigi um filme que teve problema na censura, e que até hoje não foi lançado, Boni, o homem virgem. Mojica participou dos dois filmes.

O primeiro filme que fiz com Mojica foi O estranho mundo de Zé do Caixão. Eu falei: “Mojica, vamos fazer um filme?”. Ele respondeu: “Vamos”. Então passou a propor as histórias. Eu concordei com ele e passamos a fazer o filme; eu o financiei. Quando o filme foi censurado, eu fui muitas vezes a Brasília, cheguei mesmo a falar com gente de alta patente militar. Eu achava que o filme não tinha nada de mais e, de fato, se a gente assiste hoje, não tem nada demais. Na época, havia filmes brasileiros que não deviam ser liberados porque não tinham sentido; esse pelo menos tinha sentido. Mas não conseguimos liberar, e no final tivemos até de colocar uma cena na qual a casa do Oaxiac Odez explode. A cena não estava no programa, e também tivemos que colocar mensagens bíblicas para conseguir liberar a fita. Demorou, foi uma luta.

Na época, eu na verdade era um pouco inocente com relação à matéria empresarial. Para mim o filme era meu porque estava escrito na tela “Produção: George Michel Serkeis”, mas isso não tem nenhum sentido jurídico, o que só fiquei sabendo depois. Havia contrato entre mim e o Mojica, mas o filme saiu no nome de outra pessoa, do Augusto de Cervantes. E eu tinha de acionar quem? O Mojica, eu não gostaria de processar. Ele se apresentou como vítima e realmente vi que ele era vítima. Além disso, ele era carismático. Eu tinha muita amizade com a mãe dele, os filhos dele eram todos pequenos e iam para minha casa de praia, a gente tinha amizade muito forte. Mas o Augusto me lesou na cara dura mesmo, registrou a fita no nome dele. Na censura, entrou com a empresa dele; e eu não tinha contrato com ele. Enfim, pegou o dinheiro da bilheteria e começou a carreira dele como produtor.

Na verdade foi o seguinte: eu produzi um filme e descobri que nada estava em meu nome. Então houve um conflito forte, porque o Augusto pegou o dinheiro e nunca me repassou nada. Discutimos várias vezes. Numa delas fui cobrar o Augusto e ele me ameaçou com um revólver. Fiquei com prejuízo total, e o filme foi muitíssimo bem de bilheteria. Aí o Augusto, que antes não tinha dinheiro algum, produziu o filme Meu nome é Tonho (1969) para o Ozualdo Candeias – tudo com o meu dinheiro e não me ressarciu. O Candeias não tem nada a ver com isso, mas foi um ato errado. Eu pensava que O estranho mundo de Zé do Caixão estava no meu nome, mas depois, quando fui verificar, estava tudo no nome da Ibéria, a empresa do Augusto. Eu e o Augusto tivemos muitas discussões, mas juridicamente eu não tinha como reclamar.

Segundo o Mojica me conta, ele tinha um contrato com o Augusto pelo qual não podia exibir o personagem Zé do Caixão em filmes de outros produtores, mas o Augusto nunca me falou isso. O Augusto sabia fazer as coisas em segredo. Se ele ameaçava o Mojica eu não sei; acredito até que ameaçava, mas não sei de que forma.

O dinheiro ganho com O estranho mundo de Zé do Caixão ia ser usado para a filmagem de Encarnação do demônio. Foi investido xis para fazer a película, ganhou-se dinheiro e com o resultado econômico daria para produzir Encarnação do demônio. Contudo, foi produzido Meu nome é Tonho. Isso dificultou as coisas. Eu me desinteressei um pouco e fui fazer Direito, depois fiz Jornalismo, me dediquei mais ao comércio e passei a me desvincular um pouco mais do Mojica nesse período; ele então fazia um programa de TV.

Quando eu fiz O despertar da besta (Ritual dos sádicos) foi uma coisa que aconteceu, não estava programado para eu produzir a fita. Eu sabia que daria problema na censura, porque o tema era muito pesado, mas pensava que o assunto seria superado. Nesse caso, eu não fui negociar a liberação com a censura porque havia outra pessoa envolvida. Tive envolvimento apenas na filmagem, mas com relação à censura não tive nada a ver. Na mesma época, tinha feito Boni, o homem vir- gem, que também teve problemas na censura. Esse filme foi feito praticamente num quarto só, e ele é interpretado apenas por uma mulher, a Paula Ramos. É a história de uma mulher apaixonada por um homem que ninguém vê e, no final, descobre- se que ele é um boneco.

Já a história de O fracasso de um homem em duas noites de núpcias (1972) é sobre um sujeito tímido no relacionamento sexual com a esposa. Ela percebe isso e se disfarça como outra mulher, aí ele perde totalmente a timidez e descobre, afinal, que é a esposa dele. Eu atuo nesse filme, com a Terezinha Sodré; dirigi uma parte e pedi para o Mojica dirigir outra, e ele dirigiu.

Eu produzi Finis Hominis junto com um indiano, mr. Abdel Rahman, que apresentei para o Mojica. Esse indiano era conhecido de um colega meu, que o encontrava sempre na mesquita da avenida do Estado. O estúdio onde eu e o Mojica trabalhávamos era próximo dessa mesquita, então meu amigo foi me visitar e levou com ele o indiano, que acabou se interessando em fazer cinema. Foi assim que passamos a produzir filmes juntos. Era um empresário que havia migrado para cá, começou a trabalhar com cinema, depois voltou para a Índia e em pouco tempo não sabíamos mais nada dele. Pode ser que ele tenha pensado que o cinema é alegria; talvez ele não soubesse que cinema é trabalho. Ele pensava que cinema era festa, cervejinha, samba, mas não era nada disso, era trabalho duro, de ética e de responsabilidade. Quando viu que não era nada daquilo que pensava, ele se desencantou. O indiano ficou pouco tempo no Brasil, e antes de ele viajar eu comprei a parte dele na fita. O Mojica tinha participação também, e se não me engano tinha uma pessoa do Rio que também comprou uma parte. Na época, eu já pretendia me desvincular do cinema, porque já havia começado a minha primeira tentativa no comércio. A censura também me machucou um pouco; cheguei a ser ameaçado em Brasília – e naquela época dava medo. Decidi não mexer mais com cinema e acabei vendendo a minha parte no Finis Hominis para o Marciano Bley Bittencourt.

Na minha avaliação, toda a experiência tem um valor, positivo ou negativo. No caso dos trabalhos que fiz com o Mojica, eu vi ali a arte de uma pessoa simples e vi que uma pessoa sem recursos pode fazer o que quiser, basta ter boa vontade e firmeza, pulso de ferro. Esse foi o resultado que eu mais apreciei e aproveitei. O Mojica fazia mágica! Ele não tem cultura propriamente, é uma pessoa simples, mas tem muito boa vontade e decisão, e com isso ele conseguiu fazer cinema. Além do mais, ele é excelente amigo, muitas vezes eu precisei de favores dele e ele nem pensou, se apresentou, ficou às ordens, um amigo espetacular. Como cineasta todos nós já sabemos quem é ele. Agora, como amigo, é um doce.