Portal Brasileiro de Cinema  Zé do Caixão e os Quadrinhos

Zé do Caixão e os Quadrinhos

Alexandre Agabiti

Cena do filme Esta noite encarnarei no teu cadáver (1965-66)

No artigo “Um dark muito antes dos darks” (O estranho mundo de Zé do Caixão, Porto Alegre: L&PM, 1987), Ivan Cardoso afirma: “Fui leitor assíduo do Estranho mundo de Zé do Caixão, cuja coleção ainda guardo até hoje. [...] Foi com grande surpresa que, um dia, descobri em um jornaleiro este inesquecível álbum, que misturava história em quadrinhos com fotonovela dos filmes. Para os leitores de quadrinhos era o máximo; e para os aficcionados no terror nem se fala. A dupla Lucchetti & Rosso, famosa por várias outras revistas no gênero, era a certeza de uma boa aventura”.

Inovação e renovação. Eis as palavras que Rubens Francisco Lucchetti e Nico Rosso (1910-1981) tinham em mente quando, no segundo semestre de 1968, imaginaram e realizaram a revista O estranho mundo de Zé do Caixão. Os dois já estavam cansados de produzir o gibi A cripta (1968-1969), cuja principal atração eram as histórias em quadrinhos do vampiro Nosferatu, ambientadas na Europa. A dupla queria conceber algo novo em matéria de horror quadrinhístico, e a oportunidade surgiu com a adaptação do terror caboclo de José Mojica Marins. De Nosferatu a Zé do Caixão. Do horror ao terror. Das aldeias, castelos e bosques europeus às cidades, morros e cemitérios brasileiros. Dos vampiros e monstros das lendas e tradições européias às feiticeiras desdentadas e aos demônios mulatos das crenças brasileiras. Com O estranho mundo de Zé do Caixão, a obra de Lucchetti & Rosso sofreu uma transformação radical.

Certamente, quando decidiram lançar O estranho mundo de Zé do Caixão, Armando Augusto Lopes (1914-1978) e Arlindo Pinto de Souza, proprietários da editora Prelúdio, não tinham idéia de que a revista seria a responsável por uma série de inovações nas publicações nacionais dedicadas aos quadrinhos de horror/terror. O estranho mundo de Zé do Caixão inovou porque foi a primeira revista que: (1) estampou em suas páginas histórias em quadrinhos e fotonovelas; (2) teve suas histórias narradas por um persona- gem oriundo do cinema e da televisão – a exemplo do que acontecia nos episódios da série televisiva O estranho mundo de Zé do Caixão (TV Tupi, 1968), o personagem aparecia no início, no final e nos momentos de maior emoção de cada história (ele era mostrado sempre por meio de fotografias, num trabalho de integração perfeito de foto e desenho); e (3) mostrou um terror genuinamente brasileiro – até então, as histórias em quadrinhos de horror/terror produzidas no Brasil eram protagonizadas por estrangeiros e ambientadas em outros países.

Ao dizer que O estranho mundo de Zé do Caixão significou a concepção de um terror genuinamente brasileiro, deve-se ressaltar que é nesse aspecto que reside a principal reno vação efetuada nos quadrinhos produzidos por Lucchetti & Rosso.

Nessa revista, e posteriormente em Zé do Caixão no Reino do Terror (1970), a dupla criou um universo terrorífico auten ticamente nacional. Revelou para o público o terror do cotidiano, marcado por conteúdo social; expôs, em algumas histórias, problemas e verdades que, naquele período (um dos mais repressivos do regime militar), não podiam ser mostrados.

Entretanto, não foi nada fácil adaptar para os quadrinhos o universo de Zé do Caixão, conforme atestam estas palavras de Lucchetti: “Quando tive a idéia de realizar uma revista de histórias em quadrinhos com o Zé do Caixão, já imaginei o personagem como ele aparece na abertura do filme O estranho mundo de Zé do Caixão e nos episódios das séries de televisão: um contador de histórias. Na minha concepção, ele seria um conhecedor de muitas histórias estranhas e sobrenaturais, ‘acontecimentos verídicos dos anais se cretos de Zé do Caixão’. Tão logo imaginei isso, fui falar com o Nico Rosso, com o qual produzia a revista A cripta, que vinha alcançando relativo sucesso junto ao público, por fugir do padrão dos gibis de terror da época (A cripta era publicada em grande formato, 23 x 29 cm, com desenhos em meio-tom). Nico, um assíduo espectador do programa de Mojica, entusiasmouse com a idéia. Em seguida, levei a proposta para Mojica, um fã de quadrinhos e inveterado colecionador de gibis. Ele de imediato prontificou- se a financiar o projeto. Comecei, então, a escrever os roteiros das histórias, baseando-me nos textos do programa Além, muito além do além, da TV Bandeirantes. Confesso que não foi nada fácil adaptar scripts televisivos para histórias em quadrinhos, pois eu queria conservar o estilo primitivista, que é a marca do Mojica. Sem ele, as histórias estariam descaracterizadas por completo, como aconteceu no programa da TV Tupi, que ficou sofisticado demais. Também nos deparamos com outro problema: como Zé do Caixão apareceria nos recordatórios? Nico fez inúmeros esboços, que mostravam o persona- gem nas mais variadas posições e situações.

Embora Nico tivesse um estilo muito pessoal, a idéia de mostrar o personagem por meio de desenhos não tinha nada de original, já que diversos gibis norte-americanos baseados em séries da televisão adotavam esse recurso. Foi aí que pensamos: ‘Por que não mostrar o personagem por intermédio de fotos?’. Imediatamente procurei o fotógrafo oficial de Mojica, Luiz Fidélis Barreira, em seu estúdio, na rua Teodoro Sampaio, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, e encomendei-lhe uma série de fotografias do Zé do Caixão. Algumas fotos foram aproveitadas do próprio arquivo do Fidélis; outras, principalmente aquelas que seriam utilizadas nas aberturas das histórias e deveriam ter poses especiais, tiveram de ser produzidas. Com relação ao título da revista, não foi por acaso que foi escolhido O estranho mundo de Zé do Caixão, porque ele era uma referência direta ao filme e ao programa de televisão, formando, assim, uma trilogia que tinha Zé do Caixão como narrador”.

Lucchetti ressaltou ainda que “o filme, o programa [de TV] e as histórias em quadrinhos de Zé do Caixão foram realizados segundo a linguagem de cada veículo para o qual se destinavam”. Realmente, cada arte, seja qual for (o cinema, os quadrinhos, a literatura, o teatro etc.), tem sua linguagem, suas características, suas especificidades. É por essa razão que se torna extremamente difícil adaptar para uma história em quadrinhos um romance, transformar uma peça teatral num filme... É por esse motivo também que a maioria dos filmes baseados em quadrinhos pouca ou nenhuma relação mantêm com as histórias em quadrinhos em que se basearam – em numerosos filmes, como aconteceu em O monstro do pântano (Swamp thing, 1982) e Mulher-Gato (Catwoman, 2005), a própria origem dos protagonistas foi modificada. Há, é claro, ótimas fitas baseadas em quadrinhos. Dois exemplos são Brenda Starr (Brenda Starr, 1988) e Sin City – A cidade do pecado (Sin City, 2005) que, por serem fiéis às histórias em quadrinhos em que se basearam e por adaptarem perfeitamente a linguagem quadrinhística à cinematográfica, podem ser consideradas quadrinhos na tela. Contudo, casos assim são bastante raros.

Estou dizendo isso tudo para contestar, aqui, as seguintes palavras do jornalista André Barcinski a respeito do filme À meia-noite levarei sua alma (Cinema marginal brasileiro, 2ª ed., São Paulo: Heco, 2004, p. 34): “À meia-noite... é, na verdade, um gibi transposto para as telas. Desde as primeiras cenas, quando uma bruxa pede que os espectadores mais medrosos abandonem a sala, o filme usa artifícios de HQ, como a figura do ‘apresentador’ da história, recurso comum nos gibis da EC Comics. O filme tem um ritmo vertiginoso, aceleradíssimo. As cenas se sucedem aos pulos, de um cenário para outro, sem muita enrolação. É pá-pum, um susto atrás do outro, uma surpresa a cada quadro”.

O que Barcinski afirma não tem cabimento algum. Por quê? Bem, o fato de À meia-noite levarei sua alma ter um apresentador, uma bruxa, não quer dizer que Mojica se inspirou em histórias em quadrinhos. Basta lembrar que as séries televisivas Além da imaginação (The twilight zone, 1959-1964) e Impacto (Thriller, 1960-1962) também tinham apresentadores, respectivamente o roteirista e produtor Rod Serling (1924-1975) e o ator Boris Karloff (1887-1969), e nem por isso foram inspiradas em quadrinhos. Explicando melhor: a presença do apresentador, que desempenha o papel de juiz onipresente que sabe de antemão o passado, o presente e o futuro dos personagens não é algo que possa ser considerado característica própria dos quadrinhos.

É um recurso utilizado, sim, nos quadrinhos, mas também na literatura de ficção, na televisão e no cinema, a fim de criar ou reforçar a familiaridade do público (leitor ou espectador) com a narrativa. Além do mais, em 1963, ano em que À meia-noite foi produzido, as histórias em quadrinhos de horror/terror da editora norte-americana EC Comics eram praticamente desconhecidas no Brasil – até então, apenas algumas poucas histórias tinham sido publicadas em nosso país e não chamaram a atenção dos leitores (entre esses leitores, o próprio Mojica), que só foram tomar real conhecimento delas na década de 90, quando a distribuidora Record e o editor Otacílio d’Assunção Barros lançaram o gibi Cripta do terror (1991-1992).

Quanto ao “ritmo vertiginoso, aceleradíssimo” de À meia-noite..., ele foi conseguido por meio da montagem, trabalho realizado pelo competente Luiz Elias, que, alguns anos mais tarde, montaria O despertar da besta (Ritual dos sádicos).

Abro aqui um parêntese. Ritual dos sádicos é, antes de tudo, um filme de crítica social. Ele mostra que o ser humano é um tarado que não mede conseqüências para satisfazer suas taras. É um filme moderno, ousado. É uma obra-prima. É, sem dúvida alguma, um dos melhores filmes já feitos no Brasil. Fecho o parêntese.

Voltando a falar do ritmo de À meia-noite levarei sua alma, podemos afirmar que, nas histórias em quadrinhos, os “saltos” existentes não são propriamente de uma cena a outra. Na verdade, eles existem dentro da mesma cena e são interrupções das ações dos personagens; isto é, as imagens (os quadrinhos) não mostram as ações completas. Elas mostram apenas o que é mais relevante, procedimento muito lógico, pois do contrário seria necessário um sem-número de quadrinhos para contar uma pequena história. Dessa forma, é preciso que o leitor complete, em seu cérebro, o que está faltando entre um quadrinho e outro, para que “monte” a ação completa. Uma história em quadrinhos, portanto, é formada muito mais por aquilo que não se vê do que por aquilo que se vê, o que torna o leitor praticamente um co-autor da narrativa.

Dito isso, afirmo que o ritmo de À meia-noite levarei sua alma não tem relação alguma com a linguagem dos quadrinhos. Foi um trabalho do montador, que soube dosar cenas em ritmo vertiginoso (um exemplo é a seqüência no bar, em que ocorre a briga entre Josefel Zanatas e alguns homens) com cenas de ritmo mais lento (como a seqüência em que Josefel acompanha a jovem Marta Queiroz até a casa de sua tia).

Em seu artigo, Barcinski também afirma que, em À meia-noite levarei sua alma, a maior influência são “as histórias em quadrinhos que Mojica lia desde pequeno”. Grande tolice. Nesse filme, e em qualquer outra produção de terror de Mojica, à exceção de Exorcismo negro, realizado sob inspiração do superestimado O exorcista (1973), não há influência dos quadrinhos, nem mesmo do próprio cinema. Mojica é um criador. É um cineasta que não copiou nada nem ninguém.

É um cineasta intuitivo e inventivo, que, a exemplo de Rod Serling, sabe fazer com poucos recursos grandes obras. É um cineasta que, como bem disse o professor de semiótica e escritor Décio Pignatari, “teve a coragem mandraqueira de fazer irromper o insólito no cotidiano” (no artigo “Zé do Caixão”, incluído em O estranho mundo de Zé do Caixão, op. cit.). É um cineasta único dentro da cinematografia brasileira. É, enfim, um dos maiores cineastas que o Brasil já teve, tem e terá... Nada mais resta a dizer.