Portal Brasileiro de Cinema  À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA

À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA

Ficção, 1963-64, 35 mm, P&B, 81 min, longa-metragem

 
 

O agente funerário Zé do Caixão sente grande prazer em humilhar e ridicularizar os ingênuos moradores de uma pequena cidade, em especial no que se refere à crendice deles. Mas Zé tem uma grande obsessão: gerar o filho perfeito.

Gênese do personagem Zé do Caixão, um dos mais marcantes da história do cinema brasileiro, ao lado do capitão Galdino Ferreira, de Antônio das Mortes e do Bandido da Luz Vermelha, este filme também marca a maturidade de José Mojica Marins como diretor, o que se relaciona com o domínio da linguagem cinematográfica. Em À meia-noite levarei sua alma há todo um requintado trabalho de construção de espaços diferenciados para Zé do Caixão, e esse é o modo como o filme logra distinguir este personagem dos outros.

Nas cenas passadas na taberna, por exemplo, Zé do Caixão destaca-se do resto da clientela não apenas por suas vestes e por seu comportamento sarcástico, mas especialmente porque suas entradas no ambiente são feitas sempre pelo alto, pois a porta da taberna fica acima do nível do salão.

Quando Antônio é assassinado em sua própria casa por Zé, com um golpe de barra de ferro, o algoz está em pé enquanto a vítima está sentada e fora de quadro - a utilização rica do espaço off potencializa a violência do golpe na imaginação do espectador. Essa posição de destaque também ocorre no enterro do doutor Rodolfo, cena em que inicialmente Zé do Caixão está afastado do grupo de pessoas, as quais se encontram junto da cova, e ligeiramente mais alto, pois ele está em pé sobre um túmulo. Finalmente, quando Zé clama para que os fantasmas apareçam no cemitério, ele se coloca novamente sobre um túmulo e a câmera o enquadra em contra-plongée. Ou seja, em diversos momentos a mise-en-scène reforça para o espectador o sentimento de superioridade que o personagem tem de si próprio.

A seqüência que anuncia a derrocada de Zé do Caixão também é marcada pela idéia de queda do personagem. Trata-se do momento em que ele, após ter ouvido as vozes das pessoas que matou, sobe numa espécie de plataforma dentro da sua própria casa para blasfemar contra a fé em Deus e afirmar a vida – enquadrado em contra-plogée. Mas em seguida há um claro movimento no sentido oposto ao predominante no filme, pois Zé se deita de cabeça para baixo, com olhar vidrado, e a câmera acompanha-o, passando a enquadrá-lo em plongée. Esse é o primeiro momento no filme em que ele fraqueja; e daí em diante sua descrença será colocada em dúvida por fantasmas e vozes que o atormentam. Na longa seqüência final, Zé cai por diversas vezes na mata e arrasta-se continuamente, numa inversão da posição altiva mantida até ali. Quando o personagem é achado morto pelos habitantes da cidade, ele se encontra numa posição semelhante à descrita anteriormente: deitado com a cabeça pendida para baixo e olhos esbugalhados.

Pode-se dizer, grosso modo, que a tendência dos dois terços iniciais do filme é representar Zé do Caixão elevado fisicamente quando comparado aos outros personagens, enquanto o terço final apresenta topograficamente a sua queda, mesmo porque o destino final dos cadáveres é a sepultura. Ademais, segundo a crença popular, o inferno se localizaria nas profundezas da Terra.

Arthur Autran