Portal Brasileiro de Cinema  (Des)importância da montagem

(Des)importância da montagem

Eduardo Escorel

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Seqüência do filme A hora e a vez de Augusto Matraga (1965)

Montar ou editar consiste em escolher e justapor. Apenas isso. É uma operação simples, comum a toda linguagem. No cinema não é diferente. Quem se exprime por meio da linguagem cinematográfica seleciona e combina imagens e sons.

Sendo, em sentido restrito, a última etapa de um processo, a montagem está, por conseqüência lógica, subordinada às etapas que a precedem. Ela não tem autonomia completa. Embora seja o momento em que é dada a forma final, o roteiro e a filmagem definem antecipadamente alguns dos parâmetros básicos do resultado a que o filme poderá chegar. Tarkovski discordava dos que “pretendem que a montagem é o elemento determinante de um filme. Dito de outra forma, que o filme seja criado na mesa de montagem”.1

 
Andrei Tarkovski (à esquerda) na moviola horizontal

Relativizar o poder da montagem não quer dizer que ela seja irrelevante. Não é uma questão de “tudo” ou “nada”, como Eisenstein assinalou no início do seu famoso ensaio, Montagem 1938.2 Indica apenas que a montagem não é onipotente, como se propaga. Orson Welles foi um dos responsáveis pela perpetuação desse equívoco, que continua a circular entre os desavisados. Para provocar seus entrevistadores do Cahiers du Cinéma, Welles disse a eles, em 1958, que “a única mise-en-scène de real importância é feita durante a montagem. [...] A montagem não é um aspecto, é o aspecto. Encenar um filme é uma invenção de pessoas como vocês: não é uma arte [...]. O essencial é a duração de cada imagem, o que segue cada imagem: é toda a eloqüência do cinema que se fabrica na sala de montagem”.3

Embora seja, de fato, um dos elos fundamentais do processo, isso não a torna independente. Sem os elos anteriores da cadeia que compõem a linguagem cinematográfica, não há montagem a fazer. As incontáveis operações que constituem o ato de montar são determinadas a tal ponto por outras tantas decisões anteriores, tomadas na elaboração do roteiro, no registro das imagens e dos sons, que é possível considerar que, na verdade, a montagem, em sentido amplo, começa quando o roteiro é escrito e continua a ser feita durante a filmagem.

Nem por isso a montagem é passiva, limitando-se a alinhar sons e imagens segundo uma pauta rígida e predefinida. Suprimir, reordenar, harmonizar, decidir a duração e a cadência são apenas algumas das tarefas que cabem à montagem. Mesmo no caso do roteiro inventado, segundo Godard, por um “contador da Máfia fuleiro” para poder conferir e “manter algo sob controle”,4 ainda resta uma ampla margem de definições que cabem à sala de montagem. Por mais detalhado e preciso que seja o roteiro, e por mais que certos diretores não filmem planos alternativos, a montagem ainda tem sua contribuição específica a dar. Mesmo depois que ele tenha escolhido, entre cenas repetidas, a que ficará no filme, a orquestração final, conduzida pela montagem, ainda está por ser feita.

 
Jean-Luc Godard

O roteiro indica um caminho, deixando de lado infindáveis alternativas possíveis. Delimita uma trajetória. Orienta o rumo a seguir. Constrói uma narrativa em forma não literária. Descreve o que deve ocorrer e ser dito diante da câmera.

A decupagem subdivide a ação em unidades descontínuas e indica o ponto de vista de cada plano. Em certos casos, prevê o movimento da câmera.

Na filmagem, a posição da câmera, estática ou em movimento, e a lente escolhida levam ao registro dos planos que, uma vez justapostos, comporão a narrativa.

A partir do momento em que é decidido como cada plano será filmado, a bem dizer, a montagem já começou. Decupar, tarefa do diretor, implica prever, com graus variáveis de exatidão, de que maneira cada plano será articulado com o que o precede e também com o que o sucede. É uma montagem prospectiva que poderá ser ratificada ou não depois da filmagem. A montagem tem como matéria-prima os planos, um conjunto de unidades de ação descontínuas já dotadas de sentido. As escolhas e justaposições na composição das imagens criam o que Eisenstein definiu como “conteúdo intra-frame”, resultante de “uma longa cadeia associativa de representações visuais [...] que envolve as emoções e a razão do espectador”.5 Os planos são equivalentes aos enunciados lingüísticos, já dotados de significado e resultantes de um certo grau de liberdade em sua formulação. Não correspondem aos fonemas, às unidades lingüísticas. Não se prestam, em princípio, a uma manipulação arbitrária, como tentam fazer crer os fundamentalistas da montagem ainda remanescentes.

Nas palavras de Tarkovski, “a imagem cinematográfica nasce durante a filmagem e ela só existe no interior do plano. [...] Dessa maneira, a montagem articula planos já preenchidos pelo tempo para compor o filme, tornando-o um organismo vivo e unificado, cujas artérias contêm esse tempo nos diferentes ritmos que lhe dão vida”.6 Nesses termos, a montagem é subordinada ao que a precede não apenas por uma questão lógica, mas por uma determinação ontológica.

Os arautos da montagem parecem não perceber a fragilidade das suas proclamações. Ao pretender que a montagem “seja o elemento determinante do filme”, tendem a destituir o plano do sentido que ele possui em si mesmo, do seu conteúdo intra-frame. Parecem não dar atenção ao que Bazin chamou de a “plástica do plano: [...] o estilo da cenografia e da maquiagem, [...] da interpretação, aos quais se somam naturalmente a iluminação e enfim o enquadramento que completa a composição”.7

 
André Bazin

Uma analogia enganosa é a da construção de um muro. Nessa tarefa, a ordem em que os tijolos são dispostos é indiferente. Cada um deles se equivale e eles podem ser superpostos na ordem que melhor aprouver ao construtor. O que acontece na feitura de um filme é bem diferente, pois cada plano não serve a qualquer propósito. Analogia mais apropriada à linguagem cinematográfica é a da culinária. Ao cozinhar, a escolha de cada ingrediente é essencial, assim como sua quantidade, a ordem em que são combinados, os temperos que são acrescidos e o ponto de cozimento. Billy Wilder se dizia um padeiro.8 E não terá sido por acaso que Buñuel e Carrière descreveram com tanto prazer o que é preciso para “provocar e entreter um devaneio”. Trata-se, no caso, de uma bebida, mas poderia ser um filme. Os componentes podem ser escassos, apenas dois para fazer o dry-martini. De vermute, bastam algumas gotas. Para os radicais, seria suficiente que “um raio de sol atravessasse uma garrafa de Noilly-Prat antes de atingir o copo de gim”.9

Dar usos múltiplos a um mesmo ingrediente pode resultar menos prazeroso. É o que costuma ocorrer em filmes didáticos, publicitários e de propaganda, que pretendem ensinar, persuadir e convencer. Nesses casos, muitas vezes o uso da imagem ignora o sentido próprio que ela traz de origem. Se, em Prelúdio à guerra,10 os planos filmados para Triunfo da vontade11 servem tanto para enaltecer o nazismo quanto para condená-lo, é porque no filme produzido por Frank Capra a narração e a montagem alteram o sentido original com que as imagens foram filmadas, criando uma nova cadeia associativa para o espectador. É, em última análise, uma edição que forja um sentido imprevisto na filmagem. Operação equivalente à de um falsário quando não explicita o processo que o permitiu chegar à falsificação.

Outra contrafação é a da montagem rápida, fragmentada em planos que duram frações de segundo. A pretexto de acelerar o ritmo, a duração é reduzida progressivamente, podendo chegar, no limite, a apenas um fotograma. Os planos tendem, dessa forma, a se aproximar de uma imagem estática, destituída de um dos princípios fundadores do cinema: a possibilidade de registrar o decurso do tempo.

Em contraposição aos filmes que recorrem ao suposto poder supremo da montagem, haveria aqueles que deveriam prescindir dela inteiramente. Bazin chegou a dizer que a montagem estaria “proibida”12 em situações cômicas ou nas que buscam verossimilhança. Ambas dependeriam do respeito à unidade de espaço. Os cortes comprometeriam o realismo, sendo um indício de que os fatos mostrados não ocorreram, de fato, diante da câmera.

Entendida, porém, em sentido mais amplo, a montagem abrange não só o plano-seqüência, sem cortes, mas também textos literários e descrições. Eisenstein se refere às anotações de Leonardo da Vinci sobre a maneira de representar o Dilúvio para explicitar sua concepção do “postulado da montagem de alcance infinitamente maior”.13 Essas anotações seriam particularmente apropriadas para tanto por “não lidarem com um simples objeto, mas com a imagem inteira de um vasto fenômeno”. Nunca tendo sido transformado em representação pictórica, esse “roteiro de montagem” tem “um padrão definido de movimento [que] segue uma ordem precisa e depois, invertendo a seqüência original, volta ao mesmo fenômeno com o qual começou. Iniciado por uma descrição do céu, o retrato traçado conclui com outra descrição do céu [...].

Os detalhes mais poderosos (os planos próximos) estão no meio, onde a descrição culmina [...]. Os elementos típicos de composição da montagem sobressaem com absoluta clareza”. A descrição seqüencial pretende definir a trajetória precisa do olhar de uma cena parcial a outra. Da Vinci não estava apenas descrevendo detalhes, mas traçando o caminho do futuro movimento do olhar através da superfície da tela. Vemos, segundo Eisenstein, “um exemplo brilhante de como, diante de detalhes simultâneos, aparentemente estáticos, em uma pintura sem movimento, o artista aplicou exatamente a mesma técnica de seleção que é usada na montagem, exatamente a mesma seqüência na justaposição de detalhes que também é usada em artes ‘tempo-extensivas’”.14

 
Alexander Sokurov

Esse “postulado da montagem”, definido por Eisenstein, traz à lembrança filmes que estendem a duração do plano até o caso extremo de Arca russa (2002), dirigido por Alexander Sokurov, feito em um único plano. Sokurov vinha trabalhando nessa perspectiva pelo menos desde Vozes espirituais (1994), que começa com um plano geral fixo, de cerca de trinta minutos, mostrando uma paisagem coberta de neve na fronteira do Tajiquistão com o Afeganistão. A composição da imagem, a lenta mudança de luz à medida que o sol se põe, uma pessoa que cruza o quadro de um extremo a outro caminhando junto às árvores distantes, uma fogueira que acende, o som impreciso de disparos, a superposição de pássaros etc., até a lenta fusão para o plano seguinte, são todos elementos que dirigem a atenção do espectador, orientam o olhar e a audição, engendram uma cadeia associativa. São procedimentos de montagem, na concepção de Eisenstein, quase todos adotados pelo realizador na composição do plano, durante a filmagem, antes de ter se iniciado a etapa de trabalho em que o filme ganha forma final. Entendendo que o plano tem uma “plástica”, um sentido intra-frame do qual a duração é um elemento essencial, não cabe à montagem pretender se impor ao material filmado. Ela deve resultar, ao contrário, das indicações que esse material traz em si mesmo. Trata-se portanto, essencialmente, de decifrar o que já está contido nas imagens e nos sons registrados. As inúmeras visões do acervo reunido são um esforço para tentar compreender qual a melhor opção para selecionar e ordenar aquele material concreto. Qual o momento ideal para iniciar e terminar cada plano. Como combinar cada imagem com a seguinte. À primeira vista, pode parecer que há muitas alternativas. Na verdade, em cada caso, para cada equipe de montagem confrontada com a tarefa de dar forma a um material bruto, trata-se de descobrir qual é a solução correta. A decifração terá sido tão mais exitosa quanto mais se aproximar dessa solução. Outra equipe, diante do mesmo material, poderia chegar a outras opções, e é razoável supor que resultaria um filme diverso. Para uma mesma equipe, no entanto, entre todas as variantes que ela for capaz de engendrar, apenas uma se aproximará ou, idealmente, se igualará ao potencial expressivo máximo daquelas imagens e sons. “A montagem não é, afinal de contas”, escreveu Tarkovski, “senão a variante ideal de uma colagem de planos contida a priori no material filmado. Montar um filme de maneira justa, correta, significa não romper a ligação orgânica entre certos planos e certas seqüências, como se a montagem já estivesse contida nelas antecipadamente, como se uma lei interior regesse essas ligações, e em função da qual nós tivéssemos que cortar e colar. [...] Uma construção nova se organiza por si mesma durante a montagem, graças às propriedades próprias contidas no material filmado. A ordem dada aos planos revela, de certa maneira, sua essência.”15

Em Montagem 1938, o método de montagem é definido por Eisenstein como um “princípio unificador [que] gera em todo filme, na mesma medida, tanto o conteúdo de cada fotograma quanto o conteúdo que é revelado através da justaposição desses fotogramas”.16 Tarkovski e Eisenstein estariam reconciliados?

 

1. Andrei Tarkovski, Le Temps Scelée. Paris: Éditions de l’Étoile/Cahiers du Cinéma, 1989, p. 109. [Minha tradução, nesta e nas demais citações.]

2. Publicado originalmente com o título “Palavra e imagem”, em O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. Refiro-me, neste texto, à versão publicada em Eisenstein, volume 2, Towards a Theory of Montage, editado por Michael Glenny e Richard Taylor. Londres: British Film Institute, 1991, pp. 296-326. [Grifos meus.]

3. “Entretiens avec Orson Welles par André Bazin, Charles Bitsch et Jean Domarchi”, em André Bazin, Orson Welles. Paris: Éditions du Cerf, 1972, p. 138. [Itálico do original.]

4. Jean-Luc Godard e Youssef Ishaghpour, Cinema – The Archeology of Film and the Memory of a Century. Oxford: Berg, 2005, p. 104.

5. Eisenstein, idem nota 3, pp. 301, 303 e 309.

6. Idem nota 1.

7. André Bazin, “L’Évolution du langage”, em Qu’est-ce que le cinéma? I. Ontologie et Langage. Paris: Éditions du Cerf, 1958, p. 132.

8. “Entrevistas com Billy Wilder” em Michel Ciment, Hollywood — entrevistas. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 92.

9. Luis Buñuel, Meu último suspiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 61.

10. Primeiro documentário da série Porque lutamos, realizado em 1942.

11. Dirigido por Leni Riefensthal em 1934.

12. André Bazin, “Montage interdit”, em Qu’est-ce que le cinéma? I. Ontologie et Langage. Paris: Éditions du Cerf, 1958, pp. 117-29.

13. Idem nota 3, p. 305.

14. Idem nota 3, p. 308.

15. Idem nota 1, p. 110.

16. Idem nota 3, pp. 326 e 298. Eduardo Escorel é montador e diretor.