Portal Brasileiro de Cinema Breve histórico das concepções da montagem no cinema
Breve histórico das concepções da montagem no cinema Ruy Gardnier Os primeiríssimos filmes da história do cinema, como se sabe, não tinham montagem. Eram pequenas bobinas de filme, cada uma com pouco menos de um minuto, que registravam fixamente o mesmo enquadramento. Tudo em um único plano. Acabava a bobina, acabava o filme. Ainda que em germe, a montagem nasce no ano de 1896, em Démolition d’un mur, de Louis Lumière. No filme, vemos um muro ser demolido e, depois de uns segundos de tela preta, o filme roda ao contrário e o muro se reconstrói diante de nossos olhos. É a primeira vez que dois blocos de sentido opostos são aproximados e, apesar de se tratar do mesmo plano que passa repetido duas vezes, o nexo lógico entre duas imagens está estabelecido. Nos primeiros anos do cinema, na verdade, não havia tanto problema em mexer com a parte física que implica a montagem, a de emendar partes de película. Georges Méliès, que fora prestidigitador, usa o corte e a dupla exposição para criar seus efeitos mágicos, por vezes de forma bastante virtuosa. Pessoas apareciam do nada, sumiam, cresciam assustadoramente aos nossos olhos, sempre em plano fixo. Os filmes eram extenuadamente montados, mas ainda assim davam a impressão de um único plano. Se o ato físico da montagem nasce com uma certa naturalidade no cinema, o ato lógico da montagem — utilizar diferentes distâncias e posições de câmera para filmar os mesmos acontecimentos e lugares, ou filmar acontecimentos e pessoas em diferentes lugares — não nasce com tanta simplicidade. É sensacional ver, em filmes como Pelo buraco da fechadura (1901), de Ferdinand Zecca, O beijo no trem (1899), de George Albert Smith, ou Pega ladrão (1901), de James Williamson, a insegurança em reenquadrar tal ou tal cena, criar os primeiros planos subjetivos ou registrar a correria dos personagens pelas diversas locações (freqüentemente usando as trucagens de Méliès). Assim, não é tanto com o material físico do filme que esses pioneiros entram em choque, mas com um conceito que surgiu aos poucos: a idéia de continuidade. Como fazer para que o espectador não fique perdido quando se corta de um plano a outro? Será a mesma história? As passagens de tempo e de espaço serão compreendidas? Caberá a pioneiros americanos como Edwin Porter e D. W. Griffith estabelecer as bases para a continuidade de ação de uma trama, assim como alcançar efeitos dramáticos usando a decupagem, tanto com a montagem paralela como com o uso emotivo do close. É a partir da criação de múltiplos pontos de vista, ângulos e distâncias da câmera em relação àquilo que ela filma — tudo isso agregado e transformado em algo coerente e natural na montagem — que o cinema começa a ser visto como arte autônoma, e não como um irmão mais pobre do teatro (onde só há um ponto de vista, uma distância e um ângulo entre o espectador e o palco). Mas, entre os anos 1910 e os anos 1920, não é só por meio da decupagem e da função de continuidade que a montagem acena com possibilidades ao cinema. Do outro lado do mundo, na recém-criada União Soviética, figuras como Lev Kulechov, Dziga Vertov e Sergei Eisenstein experimentavam radicalmente a associação entre imagens. No final dos anos 1910, Kulechov, com seu “experimento de Mosjukin”, notava que um plano pode alterar o significado de outro (Mosjukin + um prato de sopa = Mosjukin tem fome; o mesmo plano de Mosjukin + uma menina = Mosjukin apaixonado; Mosjukin + o caixão de uma criança = pranto). Vertov e Eisenstein buscavam a força rítmica e intelectual da montagem, criando efeitos dialéticos de comparação. Em A greve (1924), de Eisenstein, bois conduzidos ao matadouro + pessoas indo para uma fábrica = capitalismo que trata os homens como animais. Com todas as contribuições que a montagem dava à construção de uma linguagem cinematográfica autônoma, era de esperar que os montadores recebessem atenção especial, mas não foi o que aconteceu: ao passo que os diretores de fotografia eram merecidamente louvados como artistas, os montadores mal recebiam crédito. Qualquer operação de montagem era devida única e exclusivamente ao diretor. Cabe lembrar, também, que era corrente na época do cinema mudo (bem como no Brasil, entre os anos 1930 e 1940), que o próprio diretor assinasse a montagem de seu filme. A figura do montador como profissional especializado levaria ainda algum tempo para nascer, e isso aconteceria de forma paulatina. Dos anos 1920 aos anos 1940, a montagem ocupa o imaginário de quase todas as teorias do cinema. Mesmo a invenção do cinema falado, que provoca um relativo retrocesso em relação às virtualidades mais radicais da associação de planos do período anterior, não é capaz de ofuscar a importância que a montagem assume entre teóricos e ensaístas. É com o nascimento do cinema moderno, no final dos anos 1930 e começo dos anos 1940, A regra do jogo (1939), de Jean Renoir, Conto dos crisântemos tardios (1939), de Kenji Mizoguchi, Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Roma, cidade aberta (1945), de Roberto Rossellini, e com o elogio do plano-seqüência e da profundidade de campo por André Bazin (em um artigo essencial chamado “A evolução da linguagem cinematográfica”) que a montagem deixa de ser a menina-dos-olhos de toda a estética cinematográfica. O plano-seqüência e a profundidade de campo permitiram que, sem uso de cortes, o espectador presenciasse diversos acontecimentos simultâneos. O que surge é a sensação de “tempo real”, responsável por uma impressão de realidade (um “realismo”) que nem mesmo a melhor montagem (compreendida como trucagem da realidade) conseguiria criar. À montagem ainda caberiam as tarefas de continuidade, metáfora, dinamismo e ritmo, mas algumas tendências que saem do bazinismo por vezes vêem a prática com um certo desdém, como se fosse uma trapaça em relação ao real. No Brasil, com a chegada de Oswald Hafenrichter — montador do clássico inglês O terceiro homem (1949), de Carol Reed —, para trabalhar na Vera Cruz, a profissão passa a ser mais bem reconhecida na comunidade cinematográfica do país. Até então, os montadores quase nunca eram creditados na tela, o que dificulta muito a pesquisa sobre alguns pioneiros do ofício, como A. P. Castro, montador da Cinédia, e Waldemar Noya e Watson Macedo, da Atlântida. Ironicamente, enquanto a montagem vai saindo do imaginário teórico do cinema como uma grande contribuição de linguagem à sétima arte, a figura do montador passa a ser mais reconhecida no meio cinematográfico. Nos anos 1960, com a eclosão dos novos cinemas ao redor do mundo, as bases em que se assentava a linguagem do cinema narrativo são colocadas à prova e questionadas em seu cerne. Com a montagem não poderia ser diferente. Se o trabalho na moviola era visto como tendo a função primordial de manutenção da continuidade entre um plano e o seguinte (seja uma continuidade de ação, de lógica ou metafórica), agora ela é chamada a tecer laços de descontinuidade e desfazer a relação ilusória do prosseguimento de uma ação através dos planos. Em Acossado (1959), de Jean-Luc Godard, vários planos da nuca de Jean Seberg se sobrepõem uns aos outros, criando o jump cut* mais famoso da história do cinema. Os raccords — continuidade de movimento, de olhar, de posição dos atores e objetos entre um plano e outro — muitas vezes são desrespeitados, criando uma relação de dinamismo e violência perceptiva com o espectador, efeito recorrente em O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla. Ora o corte vem perturbar uma relação que estabelecemos com o espaço, ora o plano-seqüência distende nossa percepção do tempo. Questão de ritmo, questão de montagem. Imagens de síntese, montagem não-linear, predominância de efeitos especiais, “estética de videoclipe” dos planos fragmentados: os montadores continuam a apresentar novos métodos e tecnologias e a propor novos dilemas e novas questões sobre a forma como as imagens cinematográficas são organizadas e associadas. Se algumas estéticas buscam sempre levar o plano-seqüência ao seu limite – As flores de Xangai (1998), de Hou Hsiao-hsien, ou Arca russa (2002), de Alexander Sokurov –, outras confiam no poder do corte para proporcionar relações de choque ou relações lúdicas com o espectador – Enigma do poder (1998), de Abel Ferrara, ou As panteras: detonando (2003), de McG. O bom é que não precisamos escolher entre as duas propostas. A montagem, de uma forma ou de outra, permanecerá tendo importância decisiva na construção da significação de um filme.
* “Corte saltado”. Corte que dá a impressão de um pulo na passagem de um plano para o outro. |