Ismail Xavier

 
Sergei Eisenstein
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Sequência do filme Um homem com uma câmera (1929)

Especificidades da montagem

O senso comum de hoje às vezes tem a ilusão de que a montagem começou com o cinema, mas sabemos que não é bem assim. No início do século XX, a idéia de montagem vinha da indústria, da maneira como você monta um objeto industrial, a tal linha de montagem, que se chama assim não por acaso, porque já há a idéia de uma operação manual ou mediada por instrumentos em que você junta coisas que estão separadas, que não fazem parte de um organismo.

Quando Sergei Eisenstein começa a fazer a sua teoria, ele diferencia a composição do artistacineasta da composição do músico e do pintor. A montagem sempre existiu, o escritor monta, o pintor monta, mas a diferença é que no cinema a emenda permanece visível e a operação que produz a combinação de duas coisas se faz com muita clareza, num material em que a aplicação de duas coisas que são separadas fica muito clara. Se você junta sons num acorde, a rigor você poderia ver nisso uma montagem, mas quando se escuta a música você não identifica isso, a menos que tenha um ouvido muito apurado; idem com relação à pintura a óleo, pelo menos até o século XIX, até o Impressionismo. O princípio que define essa junção procura compatibilizar, juntar o todo; a passagem de uma coisa para outra não fica muito clara, as fronteiras não ficam tão nítidas.

No cinema não, qualquer pessoa pode identificar claramente a junção a partir do ponto de vista visual, e isso é um ponto importante que o Eisenstein diz: a montagem é tanto mais visível quanto mais ela evidencia a descontinuidade, e por isso a montagem ficou muito associada, na história do cinema, à vanguarda. No caso da arte moderna, por exemplo, a poesia tem a ruptura com a sintaxe, com o encadeamento da frase há a justaposição de palavras soltas, e isso evidencia a idéia de montagem. Idem com a colagem: a partir do Cubismo você tem a justaposição de material bruto, você pega um recorte de jornal e coloca em cima de uma tela onde já há tinta, então a diferença entre as matérias faz com que a colagem seja o ponto máximo da montagem. Mas no cinema você homogeneíza, tudo é película.

A idéia do estado bruto é importante porque do ponto de vista de quem monta é mesmo pegar um material em estado bruto e não tocá-lo. Cada plano que o montador mobiliza na montagem é um elemento sobre o qual ele não vai agir, ele vai apenas justapô-lo a outro, vai pegar o material já pronto e trabalhar com ele. É uma espécie de criação em segundo grau.

A montagem digital

No digital a relação com o material bruto muda, porque volta a questão da pintura, que é a da manipulação invisível. Os efeitos especiais querem, pelo menos no padrão hollywoodiano, ser o artifício levado ao máximo com ar de natureza. Eu pego, corrijo, faço um retoque, combino coisas que não estavam lá naquele fotograma, crio um fotograma que é uma composição radical, mas o princípio do digital é chegar a uma aparência de natureza. Então, embora eu tenha enfatizado a questão da materialidade como evidência da montagem, essa mesma materialidade pode ser um elemento diluidor da percepção da montagem — o digital está recolocando o problema.

Claro que, no plano ético, se as regras do jogo estiverem claras, ninguém tem motivo para questionar a intervenção na imagem. Eu vou assistir a um filme e sei que, dentro do quadro técnico das possibilidades de criação que um cineasta tem hoje, essa operação é possível. Como espectador, já estou preparado para que isso aconteça, então não posso dizer que estou sendo enganado ou que o cineasta deturpou, adulterou o documento. O problema do documento é outra coisa, se eu sou arquivista, historiador. O problema que eu vou ter diante de um fotograma do Primo Carbonari é o mesmo problema que eu vou ter diante de uma carta, o problema de preservar um documento. Entre preservar um documento e fazer um filme que é montagem de documentos há uma distância enorme e as pessoas costumam transplantar a ética do documento para a ética do documentário, que não é a mesma coisa.

O próprio Walter Benjamim dizia que queria fazer um trabalho que fosse só citação. O que ele está propondo? Ele está propondo montagem de citações e essa montagem é uma criação que vai gerar interpretações novas. Ele não está preocupado portanto com a veracidade documental, nem o cineasta. A ética do arquivista é outra, ele tem outro tipo de exigência e de cuidado técnico.

A questão do restauro digital é tão complicada quanto a polêmica com o restauro da Santa Ceia de Leonardo da Vinci. O material usado por ele para fazer as cores, o tipo de tinta, não era o usual da época, e não existe mais. Então como é que, no restauro, você vai reproduzir ou repor as mesmas cores que Da Vinci usou? Obviamente que a Santa Ceia restaurada tem uma probabilidade mínima de ser a mesma Santa Ceia de Da Vinci. No cinema nós temos o mesmo problema: num restauro fotoquímico com recursos mais antigos, os “erros”, as impossibilidades de repor o original ficavam evidentes. Você via e falava: ah, que pena, aqui não deu. Agora, o digital pode maquiar, mas o risco que se corre é que o digital pode maquiar totalmente uma restauração, e isso vai depender muito da ética dos restauradores. A discussão é difícil, seja no plano da cor, seja no plano da imagem, quando se limpa um detalhe. Se o filme tem um defeito que estava lá, como é que fica, você corrige? Tem gente que diz: sim, porque era um defeito que visivelmente não fazia parte da poética do cineasta, da proposta dele, e portanto é um ruído que se instaurou dentro no filme. É válido tirar esse ruído?

Os músicos enfrentam o mesmo problema. Vi uma entrevista com um pianista brasileiro que dizia isso. Hoje, você grava e toca não sei quantas vezes e o cara monta os melhores momentos. Fica uma performance que não existe. Todo mundo que ouve hoje um CD sabe que aquilo não foi uma performance, foi uma montagem. É o problema da correção, digamos, a idéia de perfeição, essa história que eu chamo de maquiagem, no sentido de produzir uma superfície lisa, perfeita, uma sonoridade, uma visibilidade sem nenhum tipo de escorregão, erro. A gente sabe que a performance é outra coisa.

O papel da montagem

A teoria da montagem não começou com Eisenstein nem com as vanguardas, começou quando os primeiros teóricos perceberam claramente que até para construir o encadeamento de um filme clássico, até para construir uma narrativa mais convencional, há um processo de montagem, há criação de um tempo e de um espaço, há conexões que são construídas pela montagem. Lev Kulechov viu isso muito claramente. Quando ele diz: o que faz o cinema americano ser mais eficiente que o cinema europeu? É que o americano parte do princípio de que em cada plano eu devo isolar o que mais interessa, vou me valer das possibilidades todas, das posições de câmera, para ser eficiente na direção do olhar. Então eu chamo a atenção do espectador para um detalhe e depois para outro, quer dizer, isolo os detalhes, e ao isolá-los e voltar para o conjunto sou capaz de fazer com que o pensamento do espectador, a percepção dele, siga uma cadeia de raciocínio.

O próprio Hugo Münsterberg, em 1916, num dos primeiros livros sobre cinema (The film: a psychological study), dizia que a montagem encadeia associações de idéias, encadeia comparações, até quando ela encadeia ações o faz de tal modo que o espectador consegue entender por que existe uma lógica. Então não dá para separar totalmente o que é subjetivo do que é objetivo; a montagem é a interação desses dois planos, seja num filme clássico, seja num filme de vanguarda. Claro que em um caso ou em outro o princípio que vai orientar o trabalho de montagem e as operações que nós, espectadores, teremos que fazer são diferentes, mas ambos estão marcados pela montagem.

 
Hugo Carvana, Paulo Gracindo e Jardel Filho em Terra em transe (1967)

Outra forma de salientar a questão da montagem é a idéia do choque, a idéia de que tem um salto entre um plano e outro. O grande problema que o cineasta tem é fazer com que esse salto ou se evidencie, ou seja colocado num plano mais inconsciente, de forma que o espectador fique mais preocupado em seguir o encadeamento. Essa idéia do salto marcou muitas vanguardas, não só no cinema, mas também no teatro. Tudo é uma questão de ênfase.

A arte moderna relaciona o conceito de montagem a algo muito próximo do século XX. Para alguns críticos, a literatura do século XIX está preocupada com a continuidade, por mais que haja diferença entre um Tolstói, um Flaubert, um Dostoiévski, um Zola, existe um ponto em comum que é, mesmo dentro das modulações todas, há uma busca de continuidade. As rupturas de Virginia Woolf e de Joyce é que trariam a idéia de montagem para a literatura. O interessante nesse caso é que o que interfere aí é decididamente a questão do tempo. Em geral, quando se associa a obra literária com a montagem é por causa da simultaneidade: por exemplo, quando Virginia Woolf está narrando uma cena, corta e começa a falar das associações que estão sendo feitas na cabeça do personagem, justapondo os planos distintos que estão sendo vividos ali, a cadeia dos fatos e do pensamento; isso também é muito claro em James Joyce. Então há uma literatura que vai deixar clara essa maneira de associar os elementos a partir da mistura de planos subjetivos e objetivos, essa idéia da interioridade e da exterioridade.

A montagem cinematográfica evidencia claramente que o universo das imagens não é um recalque da realidade. No momento em que há montagem você está manipulando aqueles dados como dados brutos e fazendo um discurso como um escritor o faz, porque há um agenciamento livre. O montador não tem um constrangimento, a menos que provenha de convenções culturais — se eu for um cineasta surrealista, então posso estar naquele universo de protocolos do Surrealismo; posso ser um cineasta inspirado nos protocolos do Eisenstein, na arte-pensamento; se quero trabalhar num tema hollywoodiano, uso os protocolos deles. Mas, além desses protocolos que são culturais e datados, a montagem é livre, quer dizer, você tem um campo de experimentação e de arbítrio total, que evidencia o lado artificial.

O filme de montagem

Muita gente, do ponto de vista ético, coloca na montagem o problema do cinema, o problema do documentário, que quer interagir com dados do mundo. O que significa montar? É fazer um discurso e cada documentarista vai ter seu protocolo, quer dizer, um documentarista clássico vai fazer um certo tipo de montagem em que as palavras e as imagens vão ter um modo de combinação — mais recentemente, o cinema tem evitado aquele modo explicativo em que o locutor diz e a imagem ilustra; agora a imagem mostra, cria-se uma indagação e o locutor responde à indagação criada. Há várias outras formas, por exemplo as inspiradas em Dziga Vertov, conectando a idéia do documentário com a idéia da música, porque a coisa dele é criar motivos no sentido musical da palavra, determinados temas que voltam, a recorrência, as irregularidades inesperadas do mundo dos ritmos. Em Um homem com uma câmera (Dziga Vertov, 1929), há montagem por associações, e isso está pautado por essa coisa, esse princípio musical. Você tem os temas que o compositor apresenta e que são determinadas combinações de notas, aquilo vai ser trabalhado dentro de recorrências de tensões e resoluções.

O problema de trabalhar em cima de material de arquivo é fazer uma interpretação desse material. Essa interpretação pode ser a de um historiador disciplinadíssimo, que vai dar conta do processo histórico que está implicado aí ou que marcou aquela produção visual, que vai fazer uma narrativa histórica mesmo que essa narrativa seja lacunar, mesmo que não haja uma narração de uma passagem para outra. Assim mesmo, ele está tentando dar uma evolução temporal aos fatos importantes da vida política, e isso é uma opção que a Maya Deren chamaria de opção horizontal, não no mau sentido. Quando se trabalha em cima de um material produzido por um cinejornal ou de um arquivo de televisão, existe uma expectativa de que você tentará dar conta de um processo histórico, explicar uma época, um período, determinadas relações que envolvem o Estado, a sociedade, a economia. Como, em geral, aquele material foi produzido como registro do fato, é quase como se exigissem de você uma atitude de retomar essa idéia de registro do fato — embora você não seja necessariamente obrigado a isso.

Eu posso ter outra interpretação a partir desse material de arquivo: a dos motivos de caráter visual, plástico e gestual que marcam os rituais sociais. Mas, mesmo que seja tratado como um material plástico, a pró pria relação interna vai produzir um efeito sem que haja lá um guia dado pelos fatos históricos, precisando que isso aconteceu depois daquilo. O Vertov das associações entra um pouco aí, porque no fundo é a idéia de que a realidade tem uma dimensão musical, no sentido amplo. E as estruturas da música não vivem no espaço, elas têm conexões de outro tipo; todo historiador da música faz essas conexões: por exemplo, por que determinado tipo de música tem uma estrutura que ocorre em determinado momento? Falar musicalmente não significa desterritorializar ou desprezar as relações temporais, é uma forma que às vezes pode gerar conexões até mais profundas do que as puramente cronológicas.

As relações entre arte e momento são muito mais complexas e as pessoas têm que entender isso. A montagem de material de arquivo é uma interpretação, é um gesto poético, estético. E é pela estética que se vai chegar à história, à sociedade e tudo mais, não diretamente, como um registro objetivo.

O videoclipe

O clipe era uma espécie de material de divulgação para vender um disco. A Tower Records tinha lá um monitor, o cara entrava na loja e assistia ao clipe. Era uma forma de fazer publicidade. Claro que depois o clipe foi ganhando autonomia e virando um gênero artístico como outro qualquer. Mas ele tem essa presença da música, que é um parâmetro, uma música que dura um certo tanto, que tem tal e tal característica e você vai montar um universo visual que tenha a ver com aquela música e com os intérpretes. O interessante do clipe é justamente esse parâmetro claro: um solo a partir do qual você vai trabalhar, a música. Por isso a possibilidade de invenção é muito grande, porque tudo que você fizer é recuperado pela presença da música. Você pode trabalhar com um imaginário totalmente heterogêneo, com os planos mais inusitados, com os ritmos mais inusitados e mutáveis, com mudanças de textura, pode fazer o que quiser porque tem a música como âncora. Ao assistir a um clipe, você ainda pode esquecer a âncora e ficar mais sensível a essa montagem presente na originalida de visual — e isso pode inspirar muita gente, como de fato está. Claro que é um avanço, é uma ampliação de repertório, isso expande o repertório da cultura visual e com conseqüências claras para todos os outros gêneros. Uma das coisas que o clipe nos ensina é a força com que a âncora musical, no cinema, ajuda a própria aceitabilidade de determinadas relações visuais. A gente vê o quanto a nossa conexão com as imagens muda num filme silencioso, visto com ou sem acompanhamento musical; o quanto a música ajuda a dar receptividade às imagens.

O papel do montador

Os montadores em geral têm como postura a idéia de que a contribuição deles a um filme está inscrita num projeto que não poderá receber uma intervenção que o descaracterize. Claro que cada caso é um caso; o mesmo montador, seja o Sylvio Renoldi, o Paulo Sacramento, o Eduardo Escorel, trabalhando com diretores diferentes, enfrenta questões diferentes, porque você pode ter um diretor que chega na sala de montagem sem projeto ou com um material pouco vigoroso para as soluções que ele propõe, então o montador vai ter de fazer a coisa — a gente sabe que tem filmes que são salvos por montadores.

É um problema da tradição crítica, na qual, enfim, estou inserido, que diz “o filme de fulano de tal”, aquela coisa da tradição autoral. Eu sempre senti essa espécie de trava ao me referir ao trabalho não só do Glauber Rocha, como do Rogério Sganzerla, do Júlio Bressane e do Nelson Pereira dos Santos. É um vício da crítica que, às vezes por economia de estilo, às vezes porque não tem como precisar em detalhe a forma como se chegou a determinado resultado, termina por se perpetuar, mesmo que você tenha consciência de que está simplificando um processo que não é individual. Isso não significa imaginar que foi o montador que disse como tem de ser, pode até ter sido o diretor, mas ele não teria chegado àquela solução se não fosse o diálogo que acontece na sala de montagem, o lugar onde as relações se constroem. A sala de montagem é um lugar muito peculiar de diálogo, você não sai igual depois de um longo período ali, é um diálogo muito intenso e muito mobilizador.