Portal Brasileiro de Cinema Paulo Sacramento
Paulo Sacramento Primeiras experiências Comecei a trabalhar com montagem na moviola da ECA [Escola de Comunicação e Artes da USP], de noite, quando ninguém a usava. Era um aprendizado autodidata: eu errava muito, mas, como gostava daquilo, trabalhava bastante e dava palpites em outros filmes que estavam sendo montados. O que eu queria, na verdade, era aprender a dirigir; olhava os erros e dizia, ah, isso devia ter sido feito de outra maneira. Montar foi um aprendizado de direção, uma etapa que eu deveria passar para poder dirigir. Só que fui tomando gosto pela coisa e acabei virando um pouco montador, talvez por causa do José Roberto Torero, que era aluno da ECA e tinha uma forma de cinema muito diferente da dos outros alunos. Quando comecei a montar, não sabia nada; aprendia montando, na prática, por tentativa e erro. Cheguei a ler algumas coisas de teoria, mas a prática é muito diferente. Uma vez ganhei um prêmio em Gramado, pelo Amor (1994), do Torero, um curta em 35 mm. Então alguém me deu parabéns e disse: “Você virou montador!”. E pensei, nossa!, virei montador por causa do prêmio. O fato é que acabei virando mesmo, não exatamente naquele dia. Minha primeira experiência com um longa foi um trabalho meio híbrido: Felicidade é (1995), um curta do Torero que virou longa. Só depois de uns três ou quatro anos é que montei um longa mesmo, o Cronicamente inviável (2000), do Sérgio Bianchi. Já tinha trabalhado com ele em A causa secreta (1995), como assistente de direção, e depois na produção e finalização do filme — mas não participei da montagem, da parte criativa. Simultaneamente ao Cronicamente inviável, montei o Tônica dominante (2000), da Lina Chamie. Era o momento de transição entre a moviola e o Avid (programa de computador usado para a edição de filmes). O Bianchi, por exemplo, queria montar os filmes na moviola, não no Avid. Ele tinha aquele medo todo dos diretores que sempre montaram na moviola. E eu queria muito montar no Avid, porque quase todos os filmes que eu estava fazendo já eram no Avid. Comecei a montar na moviola, mas já não havia o material necessário, não tinha fita magnética perfurada para transcrever o som; tínhamos a máquina mas não tínhamos o suporte do magnético. Precisávamos de quarenta rolos de magnético, mas conseguíamos comprar dez. Era preciso recuperar o material usado. E as moviolas já estavam em processo de deterioração. Na época, existiam 23 moviolas em São Paulo, e visitei umas quinze para ver quais estavam em condições de montar. A melhor era a da ECA, então fomos para lá. Mas elas quebravam sistematicamente, todos os dias; e vinha o técnico ou o próprio dono da sala para consertar. Era um momento de embate mesmo, de conseguir provar que aquele equipamento ainda faria um filme. Também só havia uma assistente, a Elisa Leonardi, e ela trabalhou comigo, e nos últimos cinco ou seis filmes que foram montados em moviola, em São Paulo. Ela pulava de um filme para outro, porque era a única que tinha agilidade; ninguém tinha tempo de formar pessoas. A Cristina Amaral era uma montadora que sempre se preocupava em formar as pessoas; eu não, eu pegava as pessoas no mercado. No meio do filme do Bianchi abandonamos a moviola. Foi um trauma porque todo mundo que trabalha em Avid, Final Cut, já prepara o material que sai da filmagem para o telecine; não se fica emendando, separando planos bons. Antigamente você filmava dez planos e anotava; e o laboratório separava e só copiava os bons. Na edição digital, você telecina tudo, porque é mais fácil, senão ele perde, erra o número de borda. Então tivemos de telecinar o filme do Bianchi, que estava numa pré-montagem, não do negativo, mas do copião, já inteiro cortado. Foi um problema, os números de borda não batiam; um trabalho quase insano para migrar para o digital. E foi o último filme que fiz na moviola, não por problemas com a moviola, mas por problemas estruturais mesmo, os aparelhos, os assistentes. O que mudou com o digital? Não tenho dúvida de que a visão dos montadores mudou. Antes montávamos na cabeça e depois executávamos o corte. Na moviola, o primeiro corte tinha três horas, depois ia diminuindo, afinando; você tira mas continua com um corte só, porque se cortar e resolver acrescentar depois, vai ficar cheio de durex. O meu primeiro corte ainda é como o da moviola, mesmo no equipamento digital; ainda faço um corte largo, como aprendi a fazer. Acho que os montadores não fazem mais esse corte largo, porque não existe essa questão técnica: se você voltar eletronicamente um fotograma ou dois, não vai ter aquele pulo do durex. Os montadores eram muito precisos no olhar e sabiam onde cortar. Hoje se faz por tentativa e erro. Com essa experiência antiga, trabalhase de modo mais interessante e consciente. Uma coisa é a montagem, outra o corte. Hoje as pessoas sabem cortar muito bem, muito melhor que eu; vejo gente fazendo curta que sabe como cortar, como mudar de um plano para o outro. A publicidade tem uma agilidade no corte, uma economia. Mas para mim é o contrário, penso muito mais no geral: se tiver um corte que não é uma mudança perfeita, mas está no ritmo, mantenho a cena, sem dúvida; deixo para lá o corte que dá o movimento, ou aquela coisa da montagem invisível. O computador levou as pessoas a fazer cortes perfeitos ou invisíveis, mas elas estão muito fragilizadas à estrutura dramática do filme, no ritmo; é preciso saber a hora em que você tem que alargar, esconder. As pessoas estão muito preocupadas com o ritmo da ação, não da dramaturgia. Na sala de montagem Minhas experiências mais ricas de montagem foram com o Bianchi: chegamos a escrever duas ou três seqüências novas para um filme no meio da montagem; uma vez, trocamos a cena que terminava o filme; outra, refizemos uma cena inteira porque ele resolveu trocar a atriz. Todos os offs dos filmes que fiz com ele foram escritos por mim; e o roteirista escreveu muita coisa na sala de montagem, enquanto discutíamos e eu dava a minha visão do filme, de coisas que não tinham sido gravadas nem escritas. O Cronicamente inviável tem muita coisa que não estava na primeira versão do roteiro, que foi feita na sala de montagem; antagonismos que a gente ia descobrindo. Uma dessas coisas que foram feitas na montagem, com o roteirista, o Gustavo Steinberg, foi colocar o mesmo off quando começava a Bahia e quando começava o Sul: “Uma perfeita forma de dominação autoritária”, isso não existia no roteiro. Foi também na hora que decidimos colocar, para cada lugar que íamos, uma música-clichê: no Rio de Janeiro tocava Tom Jobim; no Sul tocava aquela gaita com sanfona; no Nordeste, um axé bem popular; em São Paulo, Arrigo Barnabé. Também foi na montagem que descobrimos que se colocássemos a mesma música todas as vezes que fôssemos para o lugar, aquilo ia ficar forte. O Sérgio é incrível, porque ele entende na hora, e com isso já vai tendo outras idéias e vai amarrando. Meu trabalho com o diretor é um trabalho de diplomacia total. O montador é um diplomata que gerencia crises propondo coisas. É preciso conjugar opostos. Aquela lógica do Ulysses Guimarães, a arte de agregar e encontrar um consenso possível, essa é a base da montagem. Às vezes fico pensando o que gostaria mesmo de fazer: parece piada, mas eu gostaria de ser bibliotecário, porque adoro botar ordem nas coisas, numerar, organizar, e isso tem a ver com o trabalho do montador. Excesso de organização nunca é demais. Sempre começo o trabalho vendo todo o material. Mesmo que o diretor já tenha feito uma limpeza, quero ver tudo, ler o roteiro, não tenho esse negócio de montador que não lê o roteiro — o Sylvio Renoldi por exemplo não lia. Não sei se cada montador tem um estilo, mas há jeitos diferentes de trabalhar. As opções são diferentes. Eu, por exemplo, monto para o ator; para mim, o montador é o melhor amigo do ator, é ele que dá o tempo do ator, o ritmo. É claro que você respeita o ritmo do ator, mas você tem que interpretar por ele. Não dá para transformar um mau ator num grande ator, mas você engana: se ele não é tão bom assim, ele pelo menos parece o.k.; se ele já é bom, você o deixa excelente. Não tenho pudor de mexer em nada do que me é dado. Às vezes preciso tirar um pedaço da música porque está no tempo errado, então tiro mesmo, porque a música está lá por causa do filme. De certa maneira o trabalho de montagem também é um trabalho de roteirista. O Prisioneiro da grade de ferro Eu já era um montador estabelecido, mas queria dirigir. Quando comecei a fazer O prisioneiro da grade de ferro (2004), cheguei a gastar dinheiro do meu bolso para filmar em 16 mm. Mas estava fazendo um documentário péssimo como diretor, então percebi que aquele material não me interessava. Acontece que eu tinha pesquisado aquilo durante anos, não dava para desistir no meio da trajetória. Foi preciso ficar meses ali na montagem até encontrar a saída. Lá pelas tantas tive a idéia de fazer oficinas e ensinar os presos a mexer com a câmera e a produzir material. Foi muito interessante para mim, não só como diretor mas como montador, porque aquilo virou o filme que eu queria montar. Dirigir seria uma etapa para chegar onde efetivamente eu queria, que era ordenar aquele material. É claro que para isso eu precisava esquecer que era montador e passar sete meses como diretor, produtor, roteirista; captando as melhores imagens, direcionado as coisas, potencializando aquele universo para gerar o melhor material possível. Não era uma tese acadêmica, portanto não estava interessado em saber como era o olhar antropológico do preso; eu queria interferir para saber como era o embate entre uma equipe de cinema e uma equipe do universo dos presos. Eu estava interessado na faísca que poderia sair daquele material, não nas duas pedras isoladas. Durante a filmagem, não impusemos nenhuma regra, nem para a equipe nem para os presos; queria me afastar da idéia de que existiam os cineastas e existiam os presos, e nós filmávamos bem e eles filmavam mal... Era um trabalho de equipe. Aquela mistura de pessoas de classe média, classe baixa, cineastas, universitários etc. virou um grupo. E eu queria manter essa idéia na montagem. Depois de sete meses de filmagem que eu falei, o.k., sai o produtor, o diretor, e entra o montador, que vai trabalhar sozinho, com a experiência que ele teve lá dentro. Não houve montagem paralela. Trabalhei sozinho sete meses, triando o material e criando uma planilha no Excel. Primeiro, precisei organizar o material para saber do que se tratava, não podia usar os sentimentos que eu tinha durante a filmagem. Construí campos muito matematicamente, e fiz perguntas bem básicas: quem? onde? quando? Durante a montagem eu lembrava: ah, tinha o Pernambuco falando tal coisa. Então ia procurar aquele material, nas mais de 170 horas gravadas. Isso durou uns dois meses. Enquanto isso, eu jogava fora o que com certeza não ia entrar. Depois dos sete meses, eu tinha trinta horas de material, e algumas seqüências pré-montadas. Era um filme totalmente episódico, e eu não sabia como os episódios conversariam entre si. Quando a Idê Lacreta entrou, ela ficou muito preocupada porque sabia que a quantidade de material era imensa. Ela nunca havia montado um filme a partir do material já triado — é claro que a gente voltou alguma coisa, porque ela ainda quis ver o material bruto, mas foram exceções. Durante oito meses, trabalhamos em períodos separados: ela ficava oito horas; nos reuníamos durante uma hora para ver o que ela estava fazendo; depois eu ficava mais oito horas sozinho, e entrava uma assistente que tinha mais oito horas para fazer outra coisa. A montagem funcionava 24 horas por dia, durante uns seis meses. A Idê sentiu dificuldade no começo, porque ela queria que eu, como diretor, dissesse por onde começava o filme. E eu não sabia. Eu também era montador, e tinha travas. Percebi então que precisávamos criar um roteiro: comprei uma folha A3 e comecei a anotar os assuntos, a pensar em como ordenar aquilo — eu fazia setas, isso vai para lá, isso vem para cá; e montávamos blocos. Esse meu trabalho de roteirista era também o trabalho de dramaturgia do documentário, e o trabalho de montagem. Era preciso partir de um ponto básico, informar as pessoas: existem as cadeias e elas são assim e as pessoas vivem de forma precária, há uma tensão ali dentro. A partir disso, você tenta descobrir o resto. Não podemos partir do princípio de que o espectador já sabe alguma coisa e nós só estamos acrescentando, porque às vezes tem um que não sabe. Então é preciso repetir essa coisa durante um certo tempo, e só depois dar elementos novos. É preciso situar a pessoa, para que ela se sinta confortável — só não pode demorar muito, senão fica chato. No começo, pensamos em fazer a distribuição por assunto amarrado com os diretores do Carandiru. Mas durante o processo tive outra idéia: pode ser dividir por pavilhão, porque precisávamos localizar um pouco, criar capítulos. Agora, porque se você cria uma coisa quebrada demais, o espectador não entende. De vez em quando é preciso dar um respiro, e por isso fizemos diferenças sutis de ritmo — pára, respira fundo e muda, pega outro fio da meada. Os outros fios eram os personagens, decidimos colocar o nome deles, criando capítulos dentro dos capítulos. Na vez dos personagens, era tela preta com letra branca; na dos pavilhões, era tela branca com letra preta. Isso ajudava as pessoas a se situar. Há pelo menos quinze anos já se falava que o Carandiru poderia ser demolido, mas nunca era. Então, essa história voltou enquanto estávamos filmando; e quase no final da montagem marcaram a desativação. Como a gente precisava gravar, fomos para lá com a maior quantidade de câmeras possível e fizemos um acordo com o Hector Babenco [que estava filmando o longa-metragem Carandiru (2003)]. Chegamos a trocar material. Usei uma única cena do Babenco, que, curiosamente, é a primeira do meu filme e a última do dele; o mesmo plano que termina o filme dele começa o meu. E daí eu fiquei pensando muito tempo como eu ia usar aquelas imagens até que veio essa idéia de fazer um flashback simplesmente. Isso deu um outro peso, fiz rascunho, mostrei para a Idê e todo mundo ficou chocado, fizemos a ponte, a fita voltou e estamos dentro daquele corredor. O filme já estava no nono corte, com duas horas, estava pronto, tinha os letreiros e tudo, e aí, de repente, tinha a coisa que faltava. |