Daniel Filho

Entrevistado por Eugênio Puppo

 

Eu compararia Nelson Rodrigues a Eugene O'Neill. Aliás, ele é melhor que Eugene O'Neill; ele é um dramaturgo extraordinário, brasileiro, porque utiliza não só a idéia e a visão da alma humana, mas uma brasilidade que atravessa essa alma. A verdade é que o Nelson revolucionou a linguagem do teatro brasileiro, não só na forma, mas sem dúvida nenhuma na fala, no diálogo, na observação crítica, no poder de síntese, na poesia. Ele tem uma cadência toda especial, você não pode mudar nem acrescentar nada, nem uma vírgula. Ele é difícil; mas facílimo de ser lido quando você pega o ritmo, o tempo.

Não consigo ver o Nelson pornográfico, assim como não consigo ver a tragédia, o drama, na obra dele. O Nelson coloca o texto, as situações, a cena de uma tal forma que é você quem diz os palavrões, não ele. Lembro-me que, enquanto a gente estava lendo Beijo no asfalto, para filmar, foi sugerido que se colocassem alguns palavrões quando o personagem do Amado Ribeiro fala: "Magrinha, tua filha, magrinha. É daquelas que sobe na parede que nem lagartixa". Mas isso aí já dá a impressão de que você está ouvindo um palavrão — a descrição de uma cena sexual —, apesar de não ter um palavrão. Também não o vejo trágico porque ele tem ironia; a tragédia é para ser vista com humor, um humor que faça chorar, que seja patético. O Nelson tem esse humor até mesmo na tragédia.

Além de ser nosso mais importante dramaturgo, Nelson atuava como contista, romancista; ele estava em várias áreas defendendo seu quinhão, seu dinheiro. Era um brasileiro que precisava defender o pão de cada dia, o leite das crianças. O leite do Nelson Barba e do Joffre. Não era um homem que ficava em casa; ele precisava trabalhar, era um trabalhador braçal. E essa obrigação fez com que ele deixasse essa vasta obra. Se não estivéssemos num país de terceiro mundo, Nelson teria vivido basicamente de teatro. Essa constância da obrigação de viver torna-se também um vício, você fica com a obrigação de escrever.

Convivi com o Nelson e participei dos filmes dele com ele presente, atento. Fui a pré-estréias das peças e o vi nervoso como um menino esperando a nota da professora, precisando de cinco para passar. Ele, nervoso, com aqueles suspensórios e dizendo aquelas frases fantásticas. O Nelson era um personagem dele mesmo, gostava de um lado masoquista, os personagens estavam todos nele. Aquela hipocrisia que ele mostrava nos personagens, aquela mentira, pertencia a ele. Ele dava em cima de todas as atrizes, era um come-quieto. Mantinha essa coisa muito brasileira do homem dos anos 50: a hipocrisia, as amantes e a mãe dos filhos e essas duas famílias. Isso é uma tradição brasileira, do nortista, principalmente para uma pessoa com sangue pernambucano.

Mas o Nelson era um provocador; ele queria uma discussão inteligente. Dois amigos sentarem num bar e ficarem concordando é uma coisa profundamente desagradável. É importante abrir a dialética. O Nelson adorava essa dialética. Mesmo que ele concordasse com você, ele fazia que discordava, para haver uma discussão e tornar o papo interessante; era um criador de casos.

Obra

Você já imaginou Al Pacino fazendo Toda nudez será castigada? Que coisa maravilhosa que seria... Tenho vontade de dar o texto para ele ler. O teatro do Nelson ainda não bateu em outros lugares importantes, mas tenho certeza de que uma boa tradução e um bom elenco podem fazer com que Toda nudez será castigada ou mesmo Vestido de noiva, Senhora dos afogados, A mulher sem pecado, ou qualquer peça do Nelson, tenham uma repercussão enorme, em qualquer teatro do mundo. Ainda não tivemos uma tradução ou alguém que dissesse: "Vamos montar!".

Hugo Carvana, Ivan Cândido, Milton Morais são atores rodriguianos maravilhosos, têm o timing, a batida, um lado carioca. Fernanda Montenegro é outra grande rodriguiana; o Italo Rossi, Oswaldo Loureiro, Fernando Torres também. Fico honrado em ser apontado como um ator rodriguiano, isso para mim é o mesmo que, para o inglês, ser um ator shakespeariano.

Com o sucesso do filme Os cafajestes [1962], Jece, Norma e eu fomos contratados para fazer um programa da TV Rio, Noite de gala — era como se fosse o Fantástico de hoje, duas horas ao vivo. O Noite de gala estreou com uma orquestra regida por Antônio Carlos Jobim, e eles resolveram fazer um esquete de cinco minutos comigo, Jece e Norma, escrito pelo Nelson. Ficávamos num cenário de televisão, com um pano branco ou preto atrás, cadeiras, e o Nelson escrevia especialmente para nós, sempre três personagens.Tive o prazer de ter vivido essa experiência.

Os diálogos do Nelson têm uma aparência naturalista, mas não são como a gente fala, e esse é o grande desafio.Você tem que fazer de um jeito que soe natural, mas na verdade é uma síntese do naturalismo, porque o Nelson usava o tipo de conversa e gíria que existia nos anos 50 e 60, e de uma forma ou de outra também criava algumas gírias e maneiras de falar que pertenciam a ele e que entravam no vocabulário popular.

 

Ao longo da vida, Nelson foi trabalhando para conseguir, em menor tempo, causar maior impacto. A última peça do Nelson leva uma hora e você sai satisfeito. Ele não queria que você ficasse três, quatro horas e meia, cinco horas no teatro. Ele queria que você se empanturrasse em uma hora de emoções, de diálogos, de idéias.

A linha burra

A linha burra era o seguinte: o Nelson tinha que escrever diariamente na máquina não sei quantas laudas para A vida como ela é... De vez em quando, ele levantava e ia tomar café; então vinha o pessoal da redação, sentava na máquina e escrevia qualquer coisa e deixava essa linha lá. O Nelson voltava, olhava e incorporava. Isso ficou conhecido como a linha burra. Muita gente escreveu linhas nos contos do Nelson e ele não se importava. Se você desse algum sentido, mesmo que totalmente diferente da história, para lá ele ia. Isso é uma coisa fantástica.

O cinema de Nelson

Quando você passa um conto de Nelson para o cinema, você começa a esticar o assunto de alguém que lutava pela síntese. Você vai de forma contrária ao caminho do Nelson. Normalmente, nos contos, ele te joga três ou quatro personagens tridimensionais, e você diz: "Ah, isso aqui dá um filme maravilhoso"; mas é uma armadilha, como também aquela que parte para o exagero da sexualidade. O Nelson tem o sexo ali, mas é bom você parar antes do sexo realmente começar.

O Nelson quer a sua imaginação. Lembro dele dizer que o público não gosta que tudo seja explicado. É bom que em determinado momento o público suponha. O Nelson usa bastante reticências nos diálogos, ele não completa a frase, porque ele deixa para você preencher com a palavra que você quiser. Ele te empurra para isso; é como se ele gaguejasse e você terminasse a frase por ele. Isso dá uma satisfação ao espectador. Se é um palavrão, se é uma palavra santa, você põe o que quiser. Nelson falava "aquela mulher grã-fina subiu na cadeira e rasgou as roupas". Se você mostrar isso não fica legal. É uma figura de retórica, um exagero, para que você imagine essa grã-fina. Se eu mostrar isso, vou errar; é para ser lido, porque cada um tem uma imagem dessa grã-fina, da roupa que ela rasga etc. Alguns filmes do Nelson não me agradam porque as pessoas preenchem o que ele deixou em branco.

No filme Boca de Ouro, há uma cena em que eu estava paquerando a mulher do Jece, e ele me dizia "Se você olhar pra minha mulher outra vez, te dou seis tiros na cara", e minha fala era "Seis?", e o Jece respondia: "Meia dúzia". Isso é Nelson Rodrigues. E quando o Leleco, pela primeira vez, tenta dar uma prensada na mulher, ele pergunta "Você jura que você não esteve hoje em Copacabana? Você jura? Quer ver a sua mãe morta que você não esteve hoje em Copacabana?", e a gente já sabe que a mãe da menina morreu, e ela diz "Juro", e ele diz "Morreu", e ela diz "O quê, mamãe morreu?", "Pois é, tua mãe morta e você em Copacabana". Isso é de uma síntese, de uma crueldade maravilhosa. E aparentemente é naturalista, mas não pode ser dito de forma naturalista.

O Boca de Ouro, do Nelson Pereira dos Santos, é muito bem-sucedido. A Odete Lara é brilhante, o Ivan Cândido maravilhoso, o Jece está muito bem; o elenco é bom. Mas o mundo de Nelson Rodrigues não era o de Nelson Pereira; então, com o filme quase pronto, o diretor saiu e foi fazer o Vidas secas.

Toda nudez será castigada também é muito bom. O desempenho da Darlene Glória é umas das melhores interpretações já feitas no cinema. O que ela faz e a maneira que o Jabor dirige é um encontro maravilhoso. E gosto muito do Engraçadinha do Tanko.

A falecida [o filme] é talvez um dos primeiros bons Nelson, tem ótimas atuações, o Ivan Cândido, Fernanda Montenegro, Nelson Xavier, Joel Barcellos, mas faltou o humor. O que não acontece no filme do Jabor, por exemplo.

O Nelson, quando ia nos sets de filmagem, ficava olhando, lia o texto, mas não palpitava. Ele ficava muito tenso quando via a coisa, preocupado, um jeito de falar; ele te abraçava e vinha falando no ouvido. Mas falava pouco sobre os personagens, acho que ele não gostava desse cinema.

 
Fernanda Torres e Fernanda Montenegro no apartamento de Nelson em Copacabana

Ele tinha essa fascinação pelo lado ilusório, as divas, a criação, mas o cinema era algo que ele não dominava. Mesmo assim, ele sempre apoiava quem estava fazendo um filme dele, ia nas estréias, dava entrevistas, fazia divulgação, mesmo que ele não gostasse. Nelson era carinhoso com as pessoas do filme, apoiava tudo, porque era como todos nós, um pedinte, precisava trabalhar.

A vida como ela é...

Nelson é uma maravilha desafiante, mas ao mesmo tempo é algo que está na minha alma. A idéia de fazer A vida como ela é... foi do Nelsinho Rodrigues, era perfeita: A vida como ela é... viria imediatamente após aqueles programas policiais do SBT, dez minutos de Nelson Rodrigues. E era justamente assim a paginação da Última Hora: as colunas vinham logo depois das reportagens policiais. O Sílvio Santos não entendeu a idéia e rejeitou, só quando eu voltei para a TV Globo que eu propus e foi aceito. E propus fazer em película, para que desse um tom diferente do tom do Fantástico. Que ficasse visualmente marcado. Escolhi uma música que era quase de apresentação de programa policial.Tive a idéia de fazer a adaptação com um elenco fixo, como se fosse um elenco teatral, que tivesse uma ingênua, uma mulher fatal, um galã, um menos galã, toda uma composição que eu armei com esses dez atores. Quando apresentei para eles a história, foi uma alegria maravilhosa.

Tivemos que fazer uma seleção a partir de 3800 contos. A gente viu que vários se repetiam. Nelson tinha uma massa de manobra com algumas situações que ele repetia, mas que não era a mesma história. E eu também queria que todos tivessem o mesmo som; era importante que eles se afinassem como se fosse uma única peça, apesar de ter quarenta episódios. Então primeiro ensaiávamos o som sem saber exatamente quem ia fazer o quê, depois começamos a distribuir os papéis. Como o texto tem um ritmo, todos eles tinham que ter o mesmo tipo de cadência, apesar do personagem ser diferente. Esses ensaios foram fundamentais. Quando a gente começou a rodar, tudo saiu com uma facilidade incrível.

Otto Lara Resende

O Otto ficou sem atender telefonema do Nelson durante três anos por causa do Bonitinha, mas ordinária. A mulher do Otto ficou possessa com essa história. Nem ele nem a mulher conseguiram entender. Logicamente era uma piada, mas não tinha o menor cabimento para a seriedade do Otto. O Otto era mineiro, escrevia editorial de dois jornais que se atacavam diariamente; ele escrevia o ataque, a defesa e o contra-ataque. Esse homem era um gênio, era lindo o que ele escrevia, e o Nelson era apaixonado por esse camarada, eram grandes amigos. Aí o Nelson escreve uma peça chamada Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, em plenos anos 60; é uma sacanagem. Imagine isso na cabeça de um mineiro, um senhor casado, jornalista respeitado politicamente, um homem com posições convictas. O Otto não tinha o humor, e na cabeça do Nelson isso foi uma homenagem.

Existia uma amizade e uma provocação entre duas pessoas inteligentes que queriam a dialética como a coisa principal. Essa é a minha impressão. O Otto jamais disse "o mineiro só é solidário no câncer"; isso é coisa do Nelson, que atribuiu ao Otto. Numa entrevista com o Otto, na época do livro O reacionário, o Nelson diz que os jovens têm que envelhecer, que não existe ninguém que tenha feito alguma coisa de valor antes dos trinta anos. E o Otto pergunta que idade ele tinha quando escreveu Vestido de noiva, e ele responde: "Não interessa, não muda de assunto!" [quando a peça estreou, Nelson tinha trinta anos]. E aí tem um momento em que o Otto, já perdido na entrevista, tenta definir essa história de que abaixo dos trinta anos ninguém cria nada, e ele diz: "Mas, então, você, vou te dar o último argumento e desse aí você não tem como fugir, Nelson, que é o seguinte: Jesus Cristo morreu com trinta e três anos de idade", e o Nelson, que era católico, diz: "Isso é exceção, você só fala em exceção".

Tem outra história que eu acho maravilhosa. O Otto e o Nelson estavam andando pela rua e o Nelson, que tinha essa mania de abraçar, estava abraçado ao Otto e dizia "Otto, quando eu morrer ninguém vai se lembrar de mim", e o Otto diz "Pára de falar besteira, Nelson", e o Nelson "Eu vou morrer e ninguém vai se lembrar de mim", e o Otto "Vão lembrar, vão lembrar", "Não vai sair uma nota no jornal quando eu morrer", "Nelson, você acha que você vai morrer e não vai sair nota no jornal?", "Ninguém vai escrever sobre mim", "Nelson, eu escrevo sobre você, pronto!", certa pausa, e o Nelson pergunta "Mas você vai falar bem?", "Claro, claro que eu vou falar bem", e o Nelson "Então exagera, exagera...". É real essa história, e isso é Nelson Rodrigues. Ele era vaidoso, ele queria o aplauso.

Eça de Queirós

Um autor que sem dúvida nenhuma influenciou o Nelson foi o Eça de Queirós. O Eça também, apesar de sofisticado, era um crítico da classe média portuguesa. Na cena final do Primo Basílio, quando a mulher está morrendo, possivelmente de uma meningite, a gente atribui isso à culpa de ter traído o marido. Ela tem um ataque final quando o marido descobre a carta, e ele diz no ouvido dela: "Você me traiu? Perdoa-me Luísa, perdoa- me". Isso é Perdoa-me por me traíres.

Plínio Marcos

O mundo do Plínio é um mundo distante do meu. Mas as peças dele, principalmente Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne, são maravilhosas. Embora seja admirável, ele é mais barra-pesada que o Nelson e não tem a mesma pluralidade. O Nelson retrata a classe média, do contínuo, do funcionário público, que já sumiu do mapa brasileiro; isso que a gente chamava de "Tijuca profunda". São dois bons autores, mas o universo do Nelson não tem esse nível de submundo que tem o do Plínio, essa coisa bem forte. O Plínio é mais contundente, mais Navalha na carne.