Portal Brasileiro de Cinema  Uma questão de sintonia

Uma questão de sintonia

Odete Lara

 

No ano de 1961, quando minha carreira de atriz cinematográfica estava em plena ascensão em São Paulo, fui chamada ao Rio de Janeiro para participar do filme Boca de Ouro, baseado na peça de Nelson Rodrigues. Aceitei sem pestanejar, mesmo não tendo, até então, assistido a nenhuma encenação teatral ou filme do autor. Sabia apenas que ele era considerado um dos maiores dramaturgos brasileiros. E como pestanejar se o diretor seria outro Nelson, o Pereira do Santos, cineasta de maior prestígio na época? Ademais, tinha vontade de rever os amigos que eu conhecera no Rio, onde estive em 1958 participando da peça Santa Marta Fabril S.A., de Abílio Pereira de Almeida, na Companhia Tonia-Celi-Autran. Foi com essa mesma peça que pisei pela primeira vez no palco do TBC de São Paulo, com outro elenco: Cleyde Yaconis, Walmor Chagas, Maurício Barroso e outros.

No Rio, quando recebi o roteiro do filme, vi que eu iria fazer Guiomar, mulher do Boca de Ouro, a ser interpretado por Jece Valadão. Guiomar apresentava dois momentos: por um lado, era uma mulher suburbana, esposa ingênua apaixonada pelo marido, ainda um reles bicheiro; por outro, quando ele se torna o poderoso Boca de Ouro, ela, ostentando também o novo status, tem que engolir os abusos do marido, que, graças ao dinheiro, transava com todo tipo de mulher. Dei-me inteira ao interpretar Guiomar, especialmente a mulher ingênua de subúrbio. Para a outra face, em que ela própria tem que receber em casa as prováveis rivais, atuei mais discretamente, por achar pouco verossímeis certas situações. Mas há dois ou três anos atrás, revi o filme e o achei excelente, coisa que eu não achara na ocasião; e aceitei minha atuação.

Algum tempo depois fui convidada para participar do Bonitinha, mas ordinária, no qual me cabia interpretar a irmã maior e mais escolada da Bonitinha. Foi uma interpretação mais difícil. Lembro que, na primeira cena que rodei, eu tinha que chorar desbragadamente na frente de outra personagem feminina, por uma razão que não me lembro exatamente qual era, mas que eu achava piegas. Então recorri a algo que nunca ousara fazer, nem no cinema nem no teatro: interpretar tecnicamente, já que a cena não me tocava. Chorei, vamos dizer, para fora, exagerando na expressão e no tom. Minha sensação era de que eu não estava representando, e sim arremedando um choro. A certa altura, joguei o cabelo calculadamente para a frente, que, caindo em diversos flocos sobre o rosto, impediu que minha expressão facial fosse inteiramente revelada. Foi o modo que achei para disfarçar minha falta de convicção.

Lembro que quando o filme foi exibido, em uma sessão especial, antes de ser lançado para o público, fui pronta para ser desacreditada ou criticada. Pois não é que a cena recebeu aplausos calorosos da platéia? Fiquei realmente espantada, porque, no meu entender, uma interpretação técnica jamais poderia chegar ao espectador no teatro e, muito menos, no cinema. Com isso, aprendi que a representação técnica também podia funcionar, embora eu só me sentisse segura quando me guiava pela emoção e intuição.

Em outra cena do filme, minha personagem transa com o Jece num cemitério, dentro de uma cova vazia. Embora aquilo também me parecesse um tanto inverossímil, não tive a mesma reação. Fiz a cena com toda desfaçatez, porque, interiormente, me comprazia de chocar a sociedade, em represália à hipocrisia com que a sexualidade era encarada então.

Apesar de ter me saído bem nos dois filmes, eu não sintonizava muito com aquele universo. Tanto que deixei de atender ao convite para participar da montagem carioca de Toda nudez será castigada, dirigida por Ziembinski, e fui substituir Tereza Raquel em Liberdade, liberdade, encenada na mesma época, no Teatro Opinião.