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O melodrama no teatro de Nelson Rodrigues

Luiz Arthur Nunes

 
Nelson Rodrigues recebe flores e uma cabra de presente dos alunos da escola em que ele estudou
 
Darlene Glória em Toda nudez será castigada, de Arnaldo Jabor

Numa entrevista concedida a Neila Tavares em 1978, para a revista Ele, Nelson Rodrigues declara: "Ninguém faz nada em arte se lhe falta a dimensão de Vicente Celestino. Todos nós somos um pouco o autor de 'Acorda, Patativa'. Shakespeare viveu grandes momentos de Vicente Celestino. Ricardo III tem coisas de 'Coração materno' e de 'Ontem rasguei o teu retrato'. Em Crime e castigo, quando Raskolnikov, caindo aos pés de Sonia, brada: 'Não foi diante de ti que eu me ajoelhei, mas diante de todo o sofrimento humano', isso é antigo. Isso é Rádio Nacional. Isso é folhetim brabíssimo".

Em outra entrevista, a propósito dos folhetins que publicou com o pseudônimo de Suzana Flag e de Myrna, ele justifica seu uso desabusado de um arsenal de clichês do mais puro melodrama: "Não me arrependo. Por isso mesmo é que existe em toda a minha obra uma coisa que me deu plasticidade, me deu uma segurança técnica que eu não teria se não tivesse feito Meu destino é pecar, Núpcias de fogo, Escravas do amor, A vida de Suzana Flag. [...] [o folhetim] pode ser bonito, pode ser poético, como a obra mais hierática, ouviu?" (ALMEIDA, Abílio Pereira de et al. Depoimentos V. 1981).

Como vemos, Nelson, consciente de utilizar a tradição do melodrama, ainda a advoga como ingrediente indispensável à obra de arte. Não se pode negar que, ao longo da história, a presença de elementos melodramáticos sempre teve imenso apelo popular não só na dramaturgia e na literatura, mas também na ópera, no balé, na pintura e, mais recentemente, no cinema e na televisão. E foi justamente esse sucesso junto às massas que provocou a condenação do melodrama por parte das elites intelectuais burguesas, principalmente após os movimentos realista e naturalista do século XIX. A forma foi acusada de esquematismo, superficialidade, previsibilidade, inverossimilhança, vulgaridade etc.Arte abastardada, que só mesmo as classes inferiores podiam apreciar.

O gênio de Nelson Rodrigues, entretanto, mandou às favas o preconceito e intuiu que a exploração desse material poderia fornecer um imenso repertório de recursos de extraordinária teatralidade, acessível, também, a uma platéia bem mais vasta. Nelson gostava de posar de anti-intelectual e de exibir, em vez de erudição, intimidade com a cultura popular, adquirida por sua vivência de jornalista, que lhe permitira mergulhar as mãos na crueza da vida real. Adotando o melodrama, portanto, estaria comungando dos mesmos valores culturais do povo brasileiro, capturando- lhe a carne e o espírito. E, de acréscimo, daria um tapa com luva no autoritarismo do establishment intelectual. O melodrama, em Nelson, se confunde com o realismo. No Brasil, o dramalhão é realista por espelhar um vasto universo social dos subúrbios e das favelas. É realista por reproduzir comportamentos típicos do povo, seus gostos, sua sensibilidade, sua moral, seus mitos e tabus.

Nelson serviu-se de praticamente todas as técnicas do baú melodramático. A ação de suas peças, por exemplo, é sempre pontuada por um grande número de revelações surpreendentes e reviravoltas súbitas.A peripécia final, conduzindo ao desfecho em geral catastrófico, é invariavelmente planejada para produzir um efeito espetacular. Muitos desses coups de théâtre se valem da pista falsa, que induz o espectador a crer em algo que será radicalmente desmentido mais tarde.

Permeada de guinadas e choques, a ação do drama rodriguiano flui com energia e velocidade. Ao longo de uma rápida sucessão de eventos, a tensão dramática vai se intensificando. Não há tempo para longas exposições, preparação dramática elaborada ou caracterização minuciosa de personagens. Exposição, preparação e caracterização saltam da própria ação e diálogo, que vão sem rodeios ao fulcro dramático.

As peças lidam com situações extremas e extraordinárias, em geral ancoradas no incesto, na depravação e na violência. Seus agentes principais serão, pois, necessariamente, criaturas excepcionais, movidas por forças obscuras e avassaladoras, incapazes de comedimento ou concessão. Radicalismo, exacerbação, paroxismo são termos que se aplicam a quase todos os heróis rodriguianos, que não se parecem nem de longe com o homem comum nem com aquele retratado no drama realista. São heróis no sentido original da palavra, ainda que a estatura superior nasça de uma inversão dos pressupostos habituais. A grandeza desses seres não vem da conquista, através de sofrimento e nobreza espiritual, mas de uma precipitação espetacular na mais absoluta degradação. É pela total transgressão que se tornam sublimes, um pouco como os tipos de Jean Genet. São figuras operáticas, marionetes gigantescas varrendo o palco com gestos frenéticos, debatendo-se em extrema confusão, aprisionados num torvelinho de contradições. Mesmo os personagens secundários, sem ir tão longe como os protagonistas, se singularizam por alguma excepcionalidade ou traço idiossincrático.

Situações, ações e personagens extraordinários, exorbitantes e violentos: eis aí a matéria de que é feito o melodrama.Tudo isso se traduz no palco por uma "fisicalização" igualmente extremada. As rubricas do autor mostram seres destemperados apontando dedos acusadores, estendendo as mãos em súplica, prostrando-se aos pés uns dos outros, atirando ao chão a si próprios e uns aos outros, emitindo gritos, soluços, uivos, vociferações. Freqüentemente, tais excessos os colocam a um passo do ridículo, principalmente para o gosto moderno. O arrebatamento físico arrisca- se a ultrapassar o limite da veracidade, esfriando a empatia do espectador. E apesar de Nelson saber controlar a dosagem, muitas vezes ele parece sim buscar um distanciamento. Não é, contudo, a desmedida que provoca tal efeito: o que ele faz é desinflar, por via transversa, a excessiva temperatura emocional, introduzindo em pleno paroxismo melodramático um elemento vulgar, um detalhe trivial. Em Bonitinha, mas ordinária, o prosaico coveiro, ao interromper o encontro amoroso de Ritinha e Edgar no cemitério, dissolve o ardor romântico num clima de tragicomédia. Comicidade pura também acontece quando, ao saber da morte de Boca de Ouro, d. Guigui se lança em círculos pelo palco, com o solícito Caveirinha em seus calcanhares.

Os descontroles emocionais dos melodramáticos personagens rodriguianos são, paradoxalmente, produto da observação naturalista do comportamento popular. Nelson faz dos impulsos emocionais as motivações por excelência de seus heróis, colocando em segundo plano as faculdades intelectuais. Enquanto no processo realista de caracterização de personagens os indivíduos evoluem de forma gradual, com os movimentos psicológicos sempre justificados racionalmente, no melodrama, os heróis exacerbados sofrem súbitas mudanças de humor. É o caminho que seguem os heróis rodriguianos. Muitas das reviravoltas na ação dramática são provocadas por essas repentinas flutuações emocionais. Acusá-los de incoerência psicológica, contudo, é não saber enxergar além das aparências. Por debaixo dos espasmos desconexos operam forças irracionais, impulsos primitivos, que a censura interna não consegue controlar. Uma interpretação psicanalítica pode facilmente discernir padrões estruturais agindo no psiquismo dos personagens. Aliás, a obra rodriguiana sempre atraiu muito essa forma de abordagem interpretativa. Pouco importa que o autor se divertisse confessando seu desconhecimento de Freud ou ridicularizando os psicanalistas nas histórias. Seu profundo mergulho nos recessos da alma humana não é, de certo, fruto de estudo científico, mas da intuição de um artista de gênio.

Aí também realismo se encontra com melodrama. O emocionalismo errático, paroxístico dos personagens, é folhetinesco, enquanto que o exame de suas fundações inconscientes resulta num realismo psicológico, de um tipo, porém, que supera as limitadas convenções da época. A consistência que subjaz à aparente incoerência dos personagens, no entanto, não teria maior significação se permanecesse no plano descritivo: seu alcance, na realidade, reside no fato de traduzir-se numa ação de espantosa força dramática, de ricas sugestões poéticas e de fascinante teatralidade.

Assim como o melodrama, o universo rodriguiano também é dualístico. O problema é que seus heróis enfrentam enorme dificuldade para encontrar um lugar num ou noutro pólo. Eles oscilam entre aspirar a valores absolutos de pureza, nobreza espiritual e amor idealizado, e a mórbida atração pelo mundo material, o mundo do corpo, dos instintos, do sexo, do vício. Ao preferir o segundo caminho, invariavelmente mergulham na abjeção. A dicotomia é total. Afora poucas exceções, esses seres terminam por sucumbir à tentação, ainda que conservando sempre um anelo de pureza que os inunda de culpa. Chafurdando no pecado, com o olhar nas estrelas, a queda trágica é a sua punição. Aguardaos o aniquilamento, às vezes auto-infligido. Sem negar totalmente a salvação, Nelson a torna quase impossível. Os ideais perfeitos do melodrama, baseados no triunfo dos valores espirituais, não têm lugar no mundo dominado pela baixeza da matéria, pela miséria da carne: o mundo do naturalismo. Mas o desejo de ascender ao paraíso está tão enraizado no homem quanto a sua irrecuperável tendência a se precipitar no inferno. Assim, partido entre forças tão opostas, ele é um ser condenado, um ser trágico. Essa tensão absoluta é a essência do drama rodriguiano.