Portal Brasileiro de Cinema O cinema em Nelson Rodrigues
O cinema em Nelson Rodrigues Sérgio Augusto Não confundir com "Nelson Rodrigues no cinema"; ou seja, com o que sua obra rendeu em termos cinematográficos. Falo, primordialmente, do Nelson espectador, do Nelson cinéfilo — e de como esse relacionamento alimentou suas crônicas e influenciou sua dramaturgia. Ele adorava fazer comparações do que quer que fosse com filmes e gente de cinema. Encaixou a estafante faina dos remadores de Ben-Hur num sem-número de imagens; imaginou a cerimônia de posse do amigo Otto Lara Resende no Banco Mineiro de Produção dirigida por Orson Welles; comparava qualquer evento de dilatada duração ao épico ... E o vento levou; e quem tivesse uma voz tonitruante raramente escapava de uma aproximação com o extravagante cineasta Cecil B. De Mille, de resto, um de seus parâmetros favoritos, a quem defendia ferozmente do desdém que a "crítica erudita" (sic) lhe devotava. Nelson tinha fixação no demilliano Nero de O sinal da cruz (1932), que parece ter visto inúmeras vezes, mas não tanto quanto O Corcunda de Notre-Dame (provavelmente a versão de 1939, com Charles Laughton, dirigida por William Dieterle), que dizia ter apreciado 45 vezes, sempre "com o mesmo interesse arregalado". Contemporâneo da supremacia do cinema como entretenimento de massa, nada mais natural que o freqüentasse assiduamente desde menino. Inclusive porque só viu filmes silenciosos até os dezesseis anos de idade, sentia uma nostálgica afeição pelo cinema mudo, que até o fim da vida idealizou como o suprasumo da pureza e da estesia. Para ele, depois de 1920, o cinema passou a ser "uma paródia de si mesmo". Por que 1920, e não 1927 (quando os filmes tornaram-se sonoros) ou 1928 (quando, presumo, assistiu à sua primeira fita falada)? Isso ele nunca explicou. Pertenciam ao silencioso os atores e atrizes que mais venerava e citava como modelos de talento, beleza e carisma. Não conseguia ficar muito tempo sem cometer, em suas crônicas, uma metáfora com o caubói Tom Mix, que ora se notabilizara por "dar tiros em todas as direções", ora por montar um cavalo "que corria em todas as direções". Embora elogiasse, aqui e ali, a beleza, aparentemente inexcedível, de Ava Gardner, o paradigmático decote de Elizabeth Taylor, a sabedoria de Greta Garbo ("que só falava na tela e, ainda assim, pouquíssimo") e o "colo inacreditável de Norma Shearer" (que, curiosamente, iniciou sua carreira no ano que Nelson apontava como o limiar da decadência do cinema), sua musa permanente era Dorothy Dalton, cujo estrelato durou apenas uma década (1914-24). Não só achava Dalton um pitéu como glorificava seu sucesso ("Qualquer filme de Dorothy Dalton tinha uma bilheteria de A vida de Cristo"), usando-a como um dos exemplos máximos da época em que, a seu ver, o cinema sabia valorizar, entre outras coisas, a mulher bonita: "O sujeito ia ver uma Dorothy Dalton, uma Norma Talmadge, uma Mary Pickford, e vinha para casa abrasado de paixão. E, assim, a mulher bonita era amada na tela e na vida real". No cinema antigo, a mulher feia só entrava em cena "para lavar pratos ou enxaguar roupa", sentenciou em 1970. "Hoje, não", acrescentou, pichando em seguida os cineastas modernos, que, segundo ele, preferiam trabalhar com atrizes sem charme, mal-ajambradas, quando não horrorosas. No mesmo ano, depois de ouvir um jovem cineasta brasileiro queixar-se da baixa bilheteria de seu filme mais recente, receitou-lhe a inclusão de uma mulher bonita ou "uma vamp de cinema mudo" no elenco da próxima produção. E ainda havia a questão do sexo, oblíqua e decorosamente praticado pelas ingênuas personagens do silencioso. "O máximo que as ingênuas sabiam do sexo era o beijo", dizia, lamentando que os filmes atuais (isto é, dos anos 60) não tivessem "um único e escasso beijo", substituído que fora pelo nu. Nelson muitas vezes pensava e soava como aqueles falsos moralistas que acusavam suas peças de indecentes e escabrosas. Ainda que considerasse Hollywood o "óbvio ululante", admirava-lhe a expertise técnica e a capacidade para criar uma "relação individual e profunda entre o público e o astro". Mas arte de verdade, a seu ver, lá não se fazia. Talvez um dia se fizesse, "daqui a 6 mil anos", estimava, sem se dar conta da incoerência do raciocínio. Por ser, na sua visão, um passatempo em permanente decadência, como conseguiria o cinema melhorar de status ao longo dos próximos séculos? Imitando o europeu, nem pensar. Para ele, o cinema francês e o italiano não passavam de "dois contos do vigário". Daí seu habitual desprezo por filmes artisticamente ambiciosos e seu ódio permanente à nouvelle vague (em especial a Jean-Luc Godard —"este não joga nem de gandula no meu time"), ao Cinema Novo e à Geração Paissandu, que, com sádico prazer, não se cansava de alfinetar. Torcia o nariz até para Cidadão Kane, que considerava "um Pirandello de subúrbio", diagnóstico sem dúvida mais aplicável à sua peça Boca de Ouro. Mas pinimba com Orson Welles não tinha. Chegou a defendê-lo, em duas ou três crônicas, das ilações que um crítico carioca ousara tirar de O processo, equiparando-o a um filme policial. Nelson se orgulhava de seu simplório paladar artístico. Deu a entender que gostava de todo e qualquer western ("nunca vi um banguebangue ruim"), não perdia um filme de capa e espada (ou de D'Artagnan, como preferia qualificá- los), nem de gângster, nem de vampiro. Empunhou suas mais afiadas lanças retóricas e sofísticas para defender o lacrimogêneo Love story da férula dos críticos brasileiros, em julho de 1971. Chaplin o encantava, assim como as operetas da Metro — estreladas por Jeanette MacDonald e Nelson Eddy —, talvez por influência do crítico José Lino Grünewald, seu amigo fraternal. José Lino não foi o único crítico de cinema de suas relações. Também ficou íntimo de Antonio Moniz Vianna, nos anos 60, mas desprezava solenemente quem escrevesse a sério sobre cinema (um intelectual que não precisa ler nem pensar, maldou, de uma feita, atribuindo a tirada a Otto Lara Resende). "A crítica erudita não leva um reles espectador ao cinema", argumentou, ao cabo de mais uma defesa de Cecil B. De Mille. O melhor crítico, no seu entender, era o assaltante, "o sujeito que bate uma carteira na Cinelândia e se esconde no cinema para fugir da polícia". Se ele gosta do filme, "o filme é bom; se não, o filme é ruim". O que Nelson fez, no início dos anos 30, não era crítica de cinema, mas press releases, encomendados e pagos pela RKO Radio. Não se pode, pois, qualificar de crítica ou resenha o que saiu na edição matutina de O Globo do dia 16 de outubro de 1933, sobre o filme Pouco amor não é amor (Animal Kingdom), e que Caco Coelho incluiu no Baú de Nelson Rodrigues, recémlançado pela Companhia das Letras. Haja vista o tom, continuamente laudatório, do pequeno texto, arremetado com esta frase comprometedora: "Pouco amor não é amor, nova e maravilhosa jóia da RKO Radio, passará, breve, no [cine] Broadway". Por muito tempo Nelson negou qualquer influência do cinema em sua obra. "Meu teatro tem algo de cinematográfico: ações simultâneas, tempos diversos", admitiria, finalmente, em 1973. Boca de Ouro é filho de Cidadão Kane com Rashomon. Há ecos, em seus dramas, do Alfred Hitchcock de Rebeca e do Fritz Lang de O segredo da porta fechada. Nelson tentou emular, na peça A mulher sem pecado, o pesadelo que Salvador Dali fizera para Quando fala o coração, de Hitchcock. De todo modo, ficava irritado se lhe lembrassem que vários dos recursos cinematográficos empregados em suas peças já haviam sido incorporados à linguagem teatral, especialmente através de Bertolt Brecht, que Nelson considerava "uma besta". De outras formas, menos e mais explícitas, o cinema pulsava em suas criações, exercendo influência incomum no comportamento de seus personagens. Alaíde reconstrói parte dos acontecimentos de Vestido de noiva em cima de ... E o vento levou. O supremo desejo do industrial de Anti-Nelson Rodrigues é ser chorado no enterro "como um bandido de faroeste italiano". Quando as três grã-finas de Boca de Ouro se defrontam com o bicheiro, uma delas observa: "O Boca não é meio neo-realista? O De Sica ia adorar o Boca". A solitária mãe de Os sete gatinhos lastima-se de há muito não ir a um cinema. Ou seja, de há muito não fugir ao seu odiento claustro doméstico para um mergulho escapista na fantasia. O sonho de um enterro de luxo, com caixão de ouro e penacho, acalentado, entre outros, por Boca de Ouro, Zulmira de A falecida e Heitor de Bonitinha mas ordinária, também era a obsessão da empregada negra de Imitação da vida, folhetinesco entrevero familiar escrito por Fannie Hurst e filmado em Hollywood duas vezes (1934 e 1958). O polêmico filme de Louis Malle, Os amantes, é quase o leitmotiv de Engraçadinha depois dos trinta, a segunda parte de Asfalto selvagem. Proibido a princípio pela censura, Os amantes finalmente estreou no Rio no final de 1958, sem o corte de quinze minutos exigido por carolas e falsos moralistas de todas as crenças. Naqueles tão discutidos quinze minutos, uma esposa adúltera (Jeanne Moreau) passeia à noite com o amante (Jean Marc Bory) por um pequeno bosque, e acabam no leito, entregues aos prazeres do sexo oral, ao som de Brahms. As imagens são diáfanas, elegantes, discretíssimas, pudicas, mesmo pelos padrões atuais. Tanto assim que um dos mais desassombrados defensores do filme foi um religioso, padre Guido Logger, renomado professor de teoria cinematográfica e assistente eclesiástico do Serviço de Informações Cinematográficas da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). As discussões em torno de Os amantes se ampliaram com o filme em cartaz e chegaram ao romance de Nelson. "Uma vergonha, uma indignidade", esbraveja Engraçadinha, que entre a primeira e a segunda parte de Asfalto selvagem se convertera ao protestantismo e se transformara numa fanática religiosa. Silene, sua filha ninfeta, tara de todos os Humbert Humberts de Vaz Lobo, não só assistira ao filme como o fizera na companhia de Leleco. Mas do velho amigo Odorico Quintela, empertigado juiz que muito se assemelha ao ator Adolphe Menjou e sempre a cobiçou, Engraçadinha não obtém a adesão esperada. Depois de rever o filme, o magistrado o absolve. Falando como um alter-ego de Nelson, o dr. Odorico admite ter achado Os amantes um filme puro, corrompido, isto sim, pelo farisaísmo da platéia. Nelson achava possível fazer cinema no Brasil. Particularmente quando desaparecesse o "Cinema Novo até o último vestígio", sentenciou durante a ardorosa promoção que orquestrou para Toda nudez será castigada, a cujo diretor, Arnaldo Jabor, só fazia uma restrição: não ser reacionário como ele. Jabor retribuiu os confetes, consagrando Nelson "o maior escritor do Ocidente". Um festival de hipérboles. Jabor só deixou de ser o maior cineasta brasileiro, na opinião de Nelson, quando Neville D'Almeida encadeou em sua filmografia A dama do lotação e Os sete gatinhos. Estavam feitas as pazes com o cinema brasileiro. Nelson não resistia a uma bajulação. |