Portal Brasileiro de Cinema O anjo e o beijo
O anjo e o beijo Aída Marques No início da década de 70, com a adaptação da peça Toda nudez será castigada para o cinema, feita por Arnaldo Jabor, multiplicam-se tanto as encenações teatrais quanto as transposições cinematográficas da obra de Nelson Rodrigues. Entre 1996 e 2001, quase cem textos dramáticos são montados. Considerado pornográfico, obsceno, reacionário, sempre às voltas com problemas na censura, Nelson tem sido, nas últimas décadas, permanentemente revisitado; e chegou ao horário nobre da maior rede de televisão do país. Os estudos acadêmicos proliferam; em 2004, realiza-se na cidade do Rio de Janeiro, com capital americano, uma produção cinematográfica baseada na peça Vestido de noiva. O dramaturgo, o romancista, o jornalista, ocupa os palcos e as telas. O maior dramaturgo do país, unanimidade nacional, Nelson comove, espanta e atrai. Nelson Rodrigues, em toda sua obra, retorna sistematicamente aos mesmos temas. Esses motivos, inscritos num código moral bastante datado e certamente informados pela grande vivência que possuía na chamada imprensa marrom, possuem forte inspiração folhetinesca e melodramática. Ciúmes, vinganças, adultérios, amores proibidos, inveja compõem painéis que sofrem novos arranjos a cada texto. Como dizia o autor, o mundo todo está contido na casa do vizinho ou na esquina. Mas as preocupações de Nelson não estariam superadas numa sociedade em que inúmeros tabus foram quebrados, normas de comportamento sofreram revisão profunda e o sexo encontra-se à disposição em qualquer balcão? Se o combustível das relações humanas proposto pelo autor não mais pauta os padrões familiares e sociais, onde estaria localizado o crescente interesse pela obra? Podemos seguir algumas pistas para responder a essas questões. É preciso mencionar o tratamento dado aos diálogos (sempre diretos, coloquiais, sem floreios; o espectador facilmente reconhece sua maneira de se comunicar); a estrutura linear dos textos (sem aparentes complicações para a compreensão do desenrolar da história), ou ainda os temas que, mesmo com motivações démodés, sempre remetem às questões fundamentais que atormentam a espécie humana (como a morte, o desamparo, o ódio, as paixões e as obsessões). Entretanto, do ponto de vista temático, o mergulho é livre e profundo, ao lidar até a exaustão com assuntos sórdidos e obscenos; e o enfoque é inédito e particular a cada peça. Os personagens não apresentam o perfil psicológico característico do drama realista, não interessa aprofundar a análise das individualidades ou as razões psicológicas. Mas não se trata, tampouco, de caricaturas ou estereótipos, sobretudo na caracterização dos protagonistas. Grande parte dos personagens encontra- se numa franja não definida: tudo pode ser mudado a qualquer momento e raros são aqueles cujo comportamento é estável do início ao fim. As oscilações radicais desenham os sentimentos dos personagens, que passam do amor desesperado ao ódio desenfreado. Se os elementos constitutivos do texto se repetem, o agenciamento entre eles é sempre modificado ou enfocado sob novos ângulos; e é nessa harmonia orgânica e bemamarrada, que, apesar de linearidade e de naturalidade forjadas, o espectador é constantemente convocado a atestar o caráter ilusionista da representação. A aparente simplicidade é falaciosa. É nessa construção exaustivamente utilizada na obra do autor que dois personagens conseguem escapar das contingências sociais e das pressões que produzem esse movimento em direção às oposições extremadas. Movidos, contra tudo e todos, por poderosas forças internas, suas tomadas de posição são definitivas. Abole-se a possibilidade de virada nas opções escolhidas; e essas opções vão sendo reafirmadas no decorrer do texto, configurando uma decisão inabalável, que constitui uma marca de diferença radical. A singularidade de Arandir em Beijo no asfalto e de Ismael em Anjo negro contrasta com a grande galeria de homens e mulheres rodriguianos, onde, em determinado momento da ação, os personagens retiram as máscaras e se apresentam, inesperadamente, na mais completa nudez psíquica. Assim, a adolescente ingênua torna-se perversa e maliciosa, como Silene em Os sete gatinhos ou Maria Cecília em Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária. O poder paterno, mantenedor da ordem econômica e social, incapaz de se sustentar, despe-se e entrega suas paixões e fraquezas, como Jonas em Álbum de família, Herculano em Toda nudez será castigada ou Sabino no romance O casamento. Na peça Beijo no asfalto, a partir de um episódio corriqueiro em toda grande cidade, com a cumplicidade da polícia e da imprensa, uma teia de significações vai se formando, contaminando a população e a família de Arandir, após o beijo pedido pelo atropelado que estava morrendo. Arandir é acusado de homossexualismo e posteriormente de assassinato. Tendo atendido ao último desejo do moribundo, torna-se notícia sensacional, que serve a um jornalista sem escrúpulos para aumentar a tiragem do jornal e a um policial sórdido que precisa "limpar a barra". Entretanto, a reação inesperada comparece. Com o desenrolar da terrível trama urdida contra ele, Arandir afirma e reafirma sua disposição irrevogável: assumir o beijo como única forma de redenção possível, sustentando a decisão de fidelidade à sua verdade ao mesmo tempo que passa a compreender a extensão do seu ato. Em Anjo negro, o protagonista Ismael é um negro que odeia a sua cor. Decidido a "se tornar branco", ele executa, com êxito e sem remorso, sua estratégia. Com formação superior, passa a ser um "médico de mão cheia, de muita competência, o melhor de todos"; casa-se com uma mulher branca e muita linda e renega a mãe negra, causadora de sua desgraça.Veste-se sempre de branco, impecável. Quando a peça começa,Virgínia e Ismael estão casados, tiveram três filhos negros, mas todos foram mortos por ela. Tendo sido violentada por Ismael, obrigada a se casar com ele e encarcerada dentro de casa, Virgínia aguarda o momento da vingança definitiva, gerar um filho branco. Enquanto transcorre o velório do terceiro filho, chega à casa Elias, o irmão de criação de Ismael, branco e cego, trazendo a maldição da mãe negra. Seduzido por Virgínia, Elias é em seguida morto por Ismael. Ela engravida e dá a luz uma menina branca. Ismael, durante meses, se debruça sobre o berço para que a menina não esqueça sua cor e, completando seu plano, um dia pinga ácido nos olhos dela, cegando- a. Assim, Ana Maria jamais saberia que o pai é negro. Pai e filha desenvolvem uma paixão desmedida. Ela acredita que o pai é branco e que todos os outros homens são negros e perversos. Dezessete anos depois, Ismael constrói um mausoléu para viver com a filha, onde nenhum desejo de branco pudesse alcançá-la, mas Virgínia enlouquece vendo-se substituída pela filha e consegue convencer Ismael a abandonar Ana Maria sozinha no túmulo de vidro. Juntos continuam, Virgínia e Ismael, a gerar filhos negros que serão mortos. Enquanto o detonador para a atitude de Arandir é o acaso, Ismael traça a estratégia de um projeto definido e o persegue com firmeza inabalável, não sucumbindo diante das adversidades. Ismael e Arandir percorrem trajetos diversos. Nelson havia escrito em O Cruzeiro: "O negro Ismael — o herói — é belo, forte, sensível e inteligente. Esse desfile de qualidades não é tudo, porém. Se ele fosse perfeito, cairíamos no exagero inverso e faríamos um negro tão falso quanto o outro. Ismael é capaz também de maldades, de sombrias paixões, de violências, de ódios. Mas, no ato de amor ou de crueldade, ele é, será sempre um homem, com dignidade dramática, não um moleque gaiato". O protagonista de Anjo negro é audacioso, Nelson não faz concessões. Sem paternalismo, concebe um personagem na contramão dos personagens negros que geralmente conhecemos: não é moleque, malandro ou empregado subalterno, trata-se aqui de um homem cheio de ressentimentos e paixões, mas também de orgulho e sensibilidade, um vencedor, bem-sucedido, arquiteto do seu destino. A questão racial é tratada de forma radical. Numa sociedade dominada pelo branco, a única estratégia possível de inserção é a adoção da ética branca, dominadora e autoritária. Repudiando sua cor e origem, Ismael desfruta dos privilégios do branco: dinheiro, status, prestígio e uma mulher também branca. Arandir, aspirando a um patamar de redenção desconhecido dos personagens de Nelson Rodrigues, reafirma e reconhece a importância do seu ato para a compreensão e a visão do mundo "de um outro lugar", onde a pureza é passível de ser alcançada. Já Ismael, desde o início do texto, está consciente da única possibilidade de quebra dos preconceitos e da situação racial. Ele já começa a peça no lugar social almejado; e com o desenvolvimento da trama vai reafirmar, através da firmeza de suas ações, a manutenção de seus objetivos. O ódio à segregação racial, o ódio ao negro e ao branco, ambos cheios de intolerância e preconceito. A constituição particular desses dois personagens na obra de Nelson Rodrigues, Arandir e Ismael, que acreditam em si mesmos contra todas as pressões sociais, colocam em pauta dois temas centrais: a ética e a questão racial. Arandir é um homem que não tem preço; Ismael transforma o destino dos indivíduos de sua cor: à sua mágoa sem fim, ele contrapõe uma luta possível. A reflexão sobre a modernidade e a atualidade desses dois personagens que vivem suas contradições de forma radical é oportuna e enriquecedora, sobretudo em tempos de dúvidas, de fronteiras instáveis e de comportamentos volúveis, momentos de busca de novos paradigmas. Se, para a grande maioria dos personagens masculinos de Nelson, a derrota e a perda são o único horizonte viável, Arandir e Ismael apontam para uma mudança, que, embora colocada num espaço de manobra individual, pode balizar comportamentos afirmativos de possíveis ações transformadoras: como o beijo dado ao moribundo e o ódio às avessas pela própria cor. Desde o filme Meu destino é pecar (1952), foram rodadas 21 adaptações da obra de Nelson (A serpente jamais foi lançado e Vestido de noiva encontra- se em fase de montagem). A grande maioria dos filmes optou pelas tragédias cariocas; Anjo negro jamais foi adaptado e Beijo no asfalto conheceu duas adaptações com pressupostos de interpretação bastante distintos. Uma panorâmica sobre a filmografia baseada em Nelson demonstra a diversidade de linhagens e filiações formais que ele inspirou ao cinema brasileiro. Estão presentes nas adaptações o cinema indústria, o filme médio, o filme comercial e o filme de autor. A dessemelhança de propostas, de resultados e a grande quantidade de filmes realizados durante essas cinco décadas reafirmam a consistência da obra escrita. Nesse conjunto de adaptações, destaca-se a síntese realizada por Arnaldo Jabor em Toda nudez será castigada e O casamento, que estabelece um diálogo competente, dialético e produtivo entre filme e texto; um diálogo em que o trágico e o cômico, o macro e o micro, a família e o país imbricados criam filmes originais, que carregam o mundo rodriguiano e a sensibilidade e as preocupações do diretor. Mas a maior parte das tentativas de adaptação produziu resultados convencionais, que não agregam novos significados à obra literária. Além disso, a presença de elementos característicos do universo de Nelson não encontra eco no cinema da retomada, onde predomina a opção realista-naturalista para descrever e entender o país, estabelecendo poucos pontos de contato temáticos ou formais com essa obra fundamental. |