Portal Brasileiro de Cinema Elogio ao canastrão
Elogio ao canastrão Marco Antonio Braz
"A verdadeira vocação dramática não é o grande ator ou a grande atriz. É, ao contrário, o canastrão, e quanto mais límpido, líquido e ululante, melhor", disse, certa vez, Nelson Rodrigues. O que pode parecer mais um paradoxo rodriguiano é a chave para a estética de interpretação teatral. É uma opção consciente do dramaturgo que privilegia a expressão das emoções, acima de qualquer efeito dramático. O ator rodriguiano precisa ser três coisas: emocional, histriônico e visceral. Daí sempre terem estabelecido uma relação formal entre o teatro rodriguiano e o expressionismo. Mas a força dessa expressão em Nelson está a serviço de uma noção da vida e do artificialismo do palco. "A verdadeira dor dança mambo", afirma. Dessa fricção entre uma realidade que se mascara na dor e uma ficção que revela a realidade da dor, é que nasce a idéia de um ator rodriguiano. Curioso é que, nesse sentido, as interpretações cinematográficas de Glauber Rocha — cujos personagens ultrapassam o limite da representação da realidade, quase não cabendo nas restrições do enquadramento — são um ótimo exemplo da interpretação rodriguiana. Se Glauber tivesse filmado Senhora dos afogados, como era intenção, teríamos assistido a um encontro de gigantes e comprovado a familiaridade das propostas — mas hoje isso é apenas uma hipótese. Assentado nela, conduzo o trabalho dos atores nos personagens de Nelson. Acima de qualquer truque ou efeito de representação é a emoção que domina os personagens. E são emoções incontroláveis, vindas das sombras do humano. São elas que nos esclarecem o conflito e a cena. Sem elas o texto rodriguiano torna-se uma partitura de difícil compreensão. Daí a vital importância do estudo das rubricas do autor, que podem fazer o diretor e os atores compreenderem as falas. Nelson era um dramaturgo de gabinete, e, como tal, deixava-se tomar pelos personagens, experimentando sua ações e intenções. Segundo depoimentos, Nelson escrevia fazendo, e por isso era capaz de se levantar, ajoelhar e dar uma fala, antes de retornar à máquina de escrever para registrá-la. Foi através dessa profunda relação com os personagens que Nelson encarou o desafio de subir à cena e representar: o facínora tio Raul, de Perdoa- me por me traíres. O resultado, imortalizado em crônicas autobiográficas, é conhecido: uma das vaias mais fenomenais que a arte brasileira já experimentou, com direito até a ameaça de morte, feita por um vereador nos camarotes. Colegas de elenco dizem que Nelson era um ator maravilhoso, mas que não conseguia atravessar o fosso da orquestra do teatro. Talvez a dicção e a respiração, comprometidas pela tuberculose, tenham aumentado ainda mais o fosso entre ele e o público. Embora a atitude do dramaturgo mostrasse a intenção de se embrenhar na arte teatral e em seus meandros, através da experiência viva. É por isso que toda a ironia de Nelson sobre o trabalho dos atores sempre fornece pistas para a interpretação de sua obra. "O grande ator é inteligente demais, consciente demais, técnico demais. O canastrão, não. Está em cena como um búfalo da ilha de Marajó. Sobe pelas paredes, pendura-se no lustre e, se duvidarem, é capaz de comer o cenário. Por isso mesmo, chega mais depressa ao coração do povo." Em seu teatro, não existe espaço para psicologismos ou adaptações de métodos de interpretação. Ele é único e como tal exige uma compreensão própria, que dispensa manuais. Seu teatro e seus personagens existem sobre a realidade, porém absolutamente conscientes do jogo da representação. E mantêm um alvo nítido, sem o qual suas falas se esvaziam e enfraquecem: a emoção. Ela é o ponto nevrálgico das situações dramáticas e é para ela que se voltam todas as dezessete peças de Nelson. Daí esse teatro ser tão desafiador para qualquer intérprete: a carga emocional exigida aos personagens e a técnica adequada para lidar com ela durante uma temporada comprometem o ator com nacos da própria vida. O que nos leva a concluir que a principal qualidade de um ator rodriguiano é a coragem artística. Coragem de se desnudar de todos os truques, coragem de mergulhar no abismo da própria sombra e investigar as emoções, e coragem de se pôr em xeque como artista e ser humano. |