Portal Brasileiro de Cinema Mal comparando... Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan em cena
Mal comparando... Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan em cena Berta Waldman Nelson Rodrigues é um autor que suscita paixões. Leitores e espectadores adoram ou detestam suas peças e textos, e a crítica acompanha esse movimento binário de adesão ou recusa, saltando os meios-tons. Para além dessa oscilação, entretanto, é possível afirmar que a literatura de Nelson Rodrigues já fez escola no Brasil. Escritores tão diferentes entre si como o contista Dalton Trevisan e o dramaturgo Plínio Marcos podem ser lidos e pensados a partir do poderoso referencial rodriguiano. Mas de que é feito esse referencial? Na composição da estética rodriguiana, o primeiro dado a se considerar é o seu realismo. Nelson Rodrigues é, paradoxalmente, um "realista" que abomina o real. O apego a aspectos repulsivos e escatológicos do ser humano representados de modo paroxístico e a organização de situações modelares que se repetem ao longo de seus textos dão a impressão de uma obra que não olha para fora. A favor dessa hipótese que nega o realismo estão as repetidas manifestações de desprezo do autor pelos fatos reais, tendo inclusive cunhado (entre tantas outras) a expressão "os idiotas da objetividade", na série de crônicas A vida como ela é..., aplicada primeiro aos copydesks que estavam sendo implantados no Diário Carioca, com a função de "escovar" os textos para ganharem "objetividade". O uso da expressão é, em seguida, ampliado, aparecendo em diferentes contextos. Entretanto, o desprezo pelos fatos não impede que a realidade entre pelos fundos e se inscreva no corpo da linguagem. Nos diálogos, identificam-se os falantes da Zona Norte, dos subúrbios, da classe média, pondo em circulação mitos, desejos e anseios do homem carioca. O mau gosto escancarado tem funcionalidade expressiva e entra como ingrediente na configuração da estética rodriguiana, que olha com desconfiança para as regras acadêmicas e para o texto erudito. O leitor e o público, por seu lado, deleitam-se com a fórmula do mau gosto, o que também explica o sucesso da chanchada cinematográfica que se produziu no Brasil contemporaneamente ao teatro e à ficção de Nelson. Ao lado do realismo e do kitsch, há exageros naturalistas nos detalhes e também no modo como a família (tema maior de Nelson Rodrigues) vai sendo conduzida compulsivamente a se autodestruir e a aniquilar tudo que a rodeia. A hipérbole, o obsceno, inscrevem-se numa clave melodramática responsável pela vazão do recalcado, fazendo surgir o "desagradável", epíteto que o autor confere ao seu teatro. Comparando esse esboço de configuração da estética rodriguiana com o universo ficcional de Dalton Trevisan, nota-se que este também impede processos de identificação dos leitores com personagens imobilizadas, que vivem o incesto, transgridem as leis morais básicas, assassinam, estupram, cometem adultério e toda sorte de agressão. Enquanto Nelson Rodrigues sustenta valores considerados eternos (o amor e a imortalidade da alma, por exemplo), mantendo os conflitos das personagens pouco matizados no nível do bem e do mal, em Dalton Trevisan é pela via do desumano que se denuncia a desumanidade, isto é, optando por oferecer uma visão negativa de nossa história. Pondo em evidência aquilo que ela tem de sofrido, desastroso, segmentado e seriado, a obra de Trevisan dá voz e trânsito aos oprimidos. Essa visão de mundo calcada no negro perdeu o céu como parâmetro, detendo- se num corpo-a-corpo com o real, sem o anteparo de nenhuma idealização ou promessa de redenção. Apontando para o silêncio, os contos de Trevisan organizamse como haikais, nacionalizados por contornos que põem em cena uma forma breve e concisa, tentativa fulgurante de apossar- se do osso da narrativa. Quando são apenas numerados, os textos reforçam a composição de um mundo alienado e indiferenciado. Lentamente, os números ganham espaço na ficção descarnada de Trevisan, que já os usou até mesmo como título de obra (É o caso de 234). Mais que condensação, o resultado são flashes, iluminações, "fósforos inesperadamente riscados no escuro", como diria Virginia Woolf. Esse percurso da forma é o oposto do percorrido por Nelson Rodrigues, que engorda o relato dos romances — em geral assinados por pseudônimos femininos —, com múltiplos desdobramentos nos romances, e torna-o mais enxuto, embora não muito, no teatro e na crônica. Assim mesmo, a frase inacabada, interrompida, é característica dos dois autores, ambos atentos à fala popular. Na ficção de Trevisan, a transposição de discursos do real para a ficção compõe, com breves pinceladas, uma espécie de "quadro vivo" concentrado no essencial, sem alçapões ilusionistas, nem jogos de luz enganadores. Funcionando como moeda corrente, essas falas perdem a subjetividade, não se ligam a um corpo, correm soltas na boca de João, Maria, do pivete que passa, do bacana que leva ou dá a facada. Já o traço fino de Trevisan engrossa na pena de Nelson Rodrigues. Neste, o sério passa a melodramático, e o cômico tangencia o deboche, ainda que a hipérbole da encenação da violência seja característica dos dois autores. Há, contudo, uma diferença. Para situá-la, recorro à distinção que Gilles Deleuze faz entre repetição e generalidade. O autor opõe generalidade (como generalidade do particular) a repetição (como universalidade do singular). A generalidade é dominada pelos signos da igualdade: cada termo pode ser substituído por outros termos que lhe são iguais. Ao contrário, só é repetido o que é insubstituível. Em Dalton Trevisan, a repetição não está comprometida com a formulação de leis ou regras gerais sobre o comportamento humano. O autor apenas apresenta-o na sua singularidade. Seu uso é funcional: para revelar o cotidiano repetitivo, a seriação do homem, usa-se a repetição. Nelson Rodrigues, por sua vez, à medida que repete, dilui a repetição na igualdade de tipos e situações, que acabam por aparecer como manifestações particulares de tendências gerais do ser humano. Daí o recurso às tragédias clássicas e aos grandes mitos do Ocidente. Assim, a encenação da violência, em Nelson, mesmo quando extraída da realidade social mais palpável, acaba, por força desse movimento generalizador, tornando-se mítica. Em Dalton Trevisan, ela é histórica. |