CIDADÃO KANE (CITIZEN KANE)

Orson Welles
ESTADOS UNIDOS, 1941, P&B, 35 MM., 119 MIN.

 
 

Cidadão Kane não é apenas o filme que revolucionou o cinema ao sistematizar procedimentos que vinham sendo utilizados cá e lá, como profundidade de campo, construção psicológica do tempo,multiplicidade de formatos narrativos etc. No Brasil, é também a principal influência da peça que, em 1943, inaugurou o chamado teatro brasileiro moderno: Vestido de noiva, a segunda de Nelson Rodrigues.

No filme, um jornalista é encarregado de realizar uma reportagem sobre a morte de um grande homem de mídia que ganhou poderes de imperador (Kane) e sobre a última palavra saída de sua boca, um misterioso "rosebud". A estrutura de reportagem jornalística permite ao filme recortar nacos de tempo e amarrá-los numa narrativa repleta de "acidentes", que obrigam o espectador a participar ativamente da construção da história (nenhuma informação é dada "de graça" àquele que vê o filme).

Parece não haver nada em comum entre a estrutura nem entre a intenção de ambas as obras: a estrutura de Cidadão Kane repousa numa objetividade jornalística que, por acaso, resulta inconsistente (descobrir o significado de "rosebud" jamais vai decifrar a vida de alguém); enquanto a de Vestido de noiva passeia subjetivamente por três planos distintos da psicologia de uma personagem. Quanto às intenções, bem, jamais se poderia dizer que Vestido de noiva lida com os delírios de onipotência de Alaíde...

Se, no entanto, fixarmo-nos no fio entre estrutura narrativa e intenção dramática, pula o fato de que a implosão da narrativa em linha reta e o estabelecimento de uma dramatização por enigmas, quebra-cabeças, torna complexa a realidade dos personagens e transforma o mundo cênico em algo opaco, nebuloso, longe do sistema de visibilidade e onisciência da narrativa e da representação tradicional. O mundo saído dessas duas obras, assim, se assemelha muito mais à experiência que temos de nossas vidas — nada tem muita clareza e jamais podemos escrever o fim (é sempre um outro que inscreve nosso fim) —, e dessa forma pode nos impressionar e instaurar questionamentos: a finitude das coisas, o desejo recalcado, a ascensão e a queda, a pureza do sonho contra a mundanidade.

Outro traço pouco mencionado na relação Kane-Vestido é a figura do jornalista, recorrente na obra rodriguiana. É a partir dele que se instaura a ficção da peça Boca de Ouro, isso quando Nelson não falava especificamente sobre os jornalistas, ou intitulava suas peças com o nome de um deles. O jornalismo foi sua vida e a de sua família, e lhe valeu o trauma do irmão assassinado. Não foi à toa que Cidadão Kane falou tão forte a Nelson.

Ruy Gardnier

PRODUTORA: RKO Radio Pictures, Mercury Productions

PRODUÇÃO: Orson Welles

ROTEIRO: Herman J. Mankiewicz e Orson Welles

FOTOGRAFIA: Gregg Toland

MONTAGEM: Robert Wise MÚSICA: Bernard Herrmann

ELENCO: Orson Welles, Dorothy Comingore, Joseph Cotten, Everett Sloane, Agnes Moorehead,Ruth Warrick