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Participações por Hernani Heffner O envolvimento de Nelson Rodrigues com o cinema, para além da condição de espectador, começa de fato quando o irmão Milton, cineasta desde meados da década de 30, convida-o para escrever o argumento de Somos dois. Embora Nelson estivesse desempregado naquele ano de 1950, o convite não era uma experiência, aposta cega ou carona na fama do autor de Vestido de noiva. Nelson já passara pela atividade cinematográfica. Sabe-se de sua atuação como publicista no Programa Broadway (Ponce&Irmão) em 1931 e no filme O dia é nosso, dirigido por Milton em 1941. E Adhemar Gonzaga deixou preciosa indicação de que os irmãos envolveram-se com cavações ao longo da década de 40. Nelson escreveu muitos textos para O Globo Esportivo, Esporte em Marcha, A Marcha da Vida, Brasil na Tela, Atualidades em Revista e Revista Esportiva, cinejornais comandados por Milton, a partir de 1941. Mas Somos dois pretendia ser inovador. Agora proprietário em definitivo da distribuidora Aliança Cinematográfica, Milton queria lançar-se à produção de filmes de maior categoria técnica e artística. Mesclara a infraestrutura da Cinédia e a da Companhia Industrial Cinematográfica (Bonfanti), contratara técnicos estrangeiros — entre eles Ugo Lombardi e Jacques Lesgards —, e adotara com Oswaldo Sampaio o método americano de decupar o roteiro literário, utilizando o roteiro técnico como guia de produção e filmagem. Deixou a cargo do irmão literato a tarefa de escrever o enredo. Com as qualidades que lhe atribuíam — diálogo enxuto, preciso, ferino; personagens "saídos da realidade"; atmosferas originais — , ficaria fácil incorporar a agilidade narrativa do cinema. Para quem esperava um puro Nelson Rodrigues, o resultado foi até certo ponto surpreendente. O projeto de Milton deve ter fornecido as balizas: uma comédia musical como Hollywood fazia. Belas paisagens do Rio de Janeiro, cenários luxuosos, um cantor americanizado — Dick Farney —, fazendo o papel dele mesmo e um enredo decalcado de Cinderela. Na síntese do argumentista Léo D'Ávila — pseudônimo adotado por Nelson, que assina apenas os diálogos —, ficaria assim: "Ela, que nunca fora beijada, viveu toda uma noite entre o abismo e o céu e ao amanhecer...". Na prática o roteiro de Milton e Oswaldo contornou as possíveis sugestões do enredo que narrava a vinda de uma moça de interior para a capital, onde se apaixona por um rapaz aparentemente louco e que canta como seu ídolo musical, o cantor Dick Farney. Apesar de noivo, o falso/ verdadeiro Dick não se cansa de assediar a jovem e virgem Marina, que em determinado momento passa a acreditar que o rapaz é um tarado que se evadira da cadeia. A contradição de sentimentos (como amar um tarado?) mina suas forças e ela foge para o interior, não sem antes chamar a polícia. Resolvido o mal-entendido, Dick parte à procura dela, com direito a retrato rasgado, recomposto, disco quebrado, tempestade e um beijo de reconciliação sob chuva de pétalas. Obviamente, Milton não consegue segurar o destempero alegórico do irmão sobre sua condição de momento. O filme resulta disparatado, insólito, quando não francamente inverossímil, além de mal realizado. Parece filme de turismo, com cartões-postais cariocas. A crítica da época frisou a fraca direção, a falta de ritmo, a incongruência das situações e distribuiu patadas para toda a equipe, inclusive para Nelson. Não se reconheceu certos atrevimentos, como a indicação da prostituição como caminho natural para as jovens interioranas desempregadas e desamparadas na cidade grande, presente na conversa entre a cafetina e Marina. Assim como as tintas biográficas e a manipulação da libido pela indústria cultural, aqui figurada no transe orgástico coletivo das macacas-de-auditório. Não por acaso o "lobo mau" era um representante desse segmento. Curiosamente, o filme teve censura livre, caso único em toda a vida artística de Nelson. Não há confirmação de que ele tenha escrito o doloroso texto de Copa do Mundo de 1950, a produção seguinte de Milton, talvez adiantando a corajosa tese do olhar preconceituoso do brasileiro, que culpava apenas os jogadores negros da seleção pelo fracasso. (Os negativos do documentário Copa do Mundo de 1950, assim como os de Somos dois e de centenas de outros filmes realizados por Milton Rodrigues, desapareceram num incêndio na sede da Aliança em janeiro de 1953. As cópias remanescentes desapareceram quase todas em outro incêndio, em setembro de 1965. Fragmentos sem créditos de uma cópia do filme da Copa de 1950 foram parar nas mãos do produtor e distribuidor Nilo Machado, que os vendeu à Rede Globo. É tudo o que restou da obra.) Um novo envolvimento direto se deu apenas uma década mais tarde, ao escrever alguns diálogos adicionais do roteiro de Mulheres e milhões, de Jorge Ileli. O filme decalcava clássicos como os Mabuse, de Fritz Lang, e o Segredo das jóias, de Huston — um dos filmes preferidos do dramaturgo —, o Rififi, de Dassin, e O grande golpe, de Kubrick. Sua contribuição ao argumento de Jorge Dória e ao roteiro não creditado de Flávio Tambellini passava menos por sua fama de dialoguista seco e conhecedor do bas-fond do que pelo empréstimo de certa "personalidade carioca", com a introdução das gírias da cidade. O resultado final cheirava ao artificialismo de certa produção paulista, desconectada do ambiente social que enforma o enredo, embora seja possível reconhecer alguns méritos na mise-em-scène ileliana. Logo em seguida vem a primeira onda de adaptações cinematográficas de sua obra, em grande parte devida ao contraparente Jece Valadão. Em meio à realização dos filmes, foi convidado a escrever o argumento e os diálogos de um "docudrama" sobre Pelé, certamente por conta de seu status de maior cronista esportivo em atividade e de maior dramaturgo do teatro nacional. Não se sabe se o tom acentuadamente melodramático da narrativa biográfica deriva da paleta rodriguiana ou indica uma intromissão indevida do produtor, "co-roteirista" e protagonista (não deveria ser Pelé?) Fábio Cardoso. Ou se o que foi cortado da versão original, por ocasião da remontagem de 1971, a única que sobreviveu até hoje, afetou o ponto de vista do escritor. Certas situações parecem típicas, como o veto paterno ao namoro de Pelé com sua admiradora branca, repisando o tema do preconceito racial pelo lado menos comum, ou o fim inglório dos grandes jogadores do passado, entregues à miséria e ao fracasso na vida pós-esportiva, simulado na morte do velho craque que encerrava a montagem de 1963. O tom pouco festejador era ressaltado pela sombria narração retrospectiva do próprio Pelé e na ausência quase completa de autênticas jogadas do Rei. Aparentemente, essa foi a maior mudança introduzida na versão seguinte, com ampla cobertura documental de um sem-número de jogos, como os do triunfo da seleção em 1970. Nelson ainda contribuiria como dialoguista em Como ganhar na loteria sem perder a esportiva, filme cujo enredo e personagens pareciam saídos das páginas de suas crônicas, não fosse um dos roteiristas e diretor do filme um velho conhecido de sua obra, J. B.Tanko. A narrativa tem falas e momentos saborosos, mas é obra menor, em parte pela contenção dos excessos e da virulência direcionada à euforia do "milagre econômico" e suas fórmulas mistificadoras. Curiosamente, o enredo retomava o mesmo mote de O dia é nosso, primeiro filme de que Nelson participou. Somos dois Milton Rodrigues PRODUTORA: Milton Rodrigues Produções e Cinédia PRODUÇÃO: Milton Rodrigues DISTRIBUIDORA: Aliança Cinematográfica Brasileira ARGUMENTO: Léo Danila DIÁLOGOS: Nelson Rodrigues FOTOGRAFIA: Ugo Lombardi MONTAGEM: Ugo Lombardi e Iva Lombardi CENOGRAFIA: Oswaldo Sampaio MÚSICA: Radamés Gnattali ELENCO: Marina Cunha, Dick Farney, Norma Tamar, Sarah Nobre, Sérgio de Oliveira, Carlos Cotrim, Octávio Franca, Lou, René Bell, Vitória Brasil, Pérola Negra, Hamilton Pacheco, Nilton Barros Mulheres e milhões Jorge Ileli PRODUTORA: Imbracine PRODUÇÃO: Gilberto Perrone DISTRIBUIDORA: Fama Filmes ROTEIRO: Jorge Ileli e Flávio Tambellini (baseado em argumento de Jorge Dória) DIÁLOGOS ADICIONAIS: Nelson Rodrigues COREOGRAFIA: Yanka Rudzka FOTOGRAFIA: Rudolf Icsey MONTAGEM: Maria Guadalupe CENOGRAFIA: Peter Overbeck e Georges Walford ELENCO: Aurélio Teixeira, Norma Bengell, Jece Valadão, José Mauro Vasconcelos, Mario Benvenuti, Odete Lara, Luigi Picchi, Glauce Rocha, André Dobroy, Lyris Castellani, Norma Blum, Beyla Genauer, Luely Figueiró, Sergio Warnowski, Roberto Duval, Monah Delacy, Daniel Filho, Myriam Rony, Império Montenegro, Marlene França, Jan Laffront, Roberto Maia, Benito Rodrigues O rei Pelé Carlos Hugo Christensen PRODUTORA: Decine Propaganda PRODUÇÃO: Fábio Cardoso DISTRIBUIDORA: U.C.B. União Cinematográfica Brasileira ROTEIRO: Carlos Hugo Christensen (argumento de Fábio Cardoso e Nelson Rodrigues, baseado no livro Eu sou Pelé, de Benedito Rui Barbosa) DIÁLOGOS: Nelson Rodrigues FOTOGRAFIA: Mário Pagés MONTAGEM: Waldemar Noya CENOGRAFIA: Benet Domingo MÚSICA: Lyrio Panicalli ELENCO: Pelé, Nelson Rodrigues, Celeste Arantes do Nascimento, Maria Lucia do Nascimento, Jair Arantes do Nascimento, Georgina Rodrigues, Athiê Jorge Como ganhar na loteria sem perder a esportiva J. B. Tanko PRODUÇÃO: Herbert Richers e J.B. Tanko P. C. ROTEIRO: J. B. Tanko (baseado em argumento de J. B. Tanko, Flavio Migliaccio e Gilvan Pereira) FOTOGRAFIA: Antonio Gonçalves MÚSICA: Edino Kriger ELENCO: Costinha, Flavio Migliaccio, Agildo Ribeiro, Procópio Ferreira, Zeloni, Paulo Porto, Silva Filho, Renata Fronzi, Maria Della Costa, Marta Anderson, Ligia Diniz, Fregolente, Mario Benvenutti, Labanca¸ Milton Vilar, Celeste Ainda, Afonso Stuarte, Tereza Mitota, Maria Pompeu, Zeny Pereira, Fernando José, Jorge Cherques, Tereza Matota, Fernando Repsold, Moacir Derinquem, Carvalhinho, Maria Helena Velasco, Francisco Dantas, Antonio Miranda, Luiz Mendonça, Milton Cruz, Wilson Grey, Tereza Sodré, Waldir Fiori, Ângelo Antonio, Edgard Martorelli |