A FALECIDA

Leon Hirszman
RIO DE JANEIRO, 1965, P&B, 35 MM., 85 MIN.

 

Antes de Arnaldo Jabor, as adaptações de Nelson Rodrigues para o cinema carregavam invariavelmente um quê envergonhado, como se fosse preciso ao cineasta justificar-se por estar mexendo com esse tipo de texto.

Desde os letreiros, aliás, sabemos que o filme se baseia em uma "estória de Nelson Rodrigues", nada mais. O roteiro de Eduardo Coutinho e Leon Hirszman confirma a tomada de distância do universo rodriguiano. O tom explosivo é violentamente rebaixado, o tempo é distendido, os personagens como que se calam para que as imagem falem. Belas e austeras imagens, convém notar, que parecem aspirar à conciliação entre uma mise-en-scène jansenista, acrescida de um toque de nouvelle vague, e um clima de subúrbio carioca criado com muita eficácia.

A música dos letreiros não deixa dúvida quanto à natureza deste filme, que utiliza um quadro popular (não foge a ele), mas procura, plano após plano, tomar distância do que existe de irremediavelmente popular no texto original. Em definitivo, A falecida é um filme sobre o povo, mas não para o povo; sobre o subúrbio, mas não para o subúrbio.

Leon Hirszman observa, como um aplicado voyeur, esse mundo de que Nelson Rodrigues partilha intensamente.Tudo parece concebido para reforçar a distância em relação a Nelson e afirmar o caráter intelectual, cinema-novista, distingué, em suma, do filme: a luz de José Medeiros, por exemplo, e sobretudo a interpretação terrivelmente sóbria, contida e em todos os sentidos admirável de Fernanda Montenegro.

É como se Leon julgasse o mundo de Nelson bruto demais e buscasse adaptá-lo. Leon acredita em psicologia, e assim desenvolve a personagem de Zulmira, a mulher obcecada pela morte, que buscará, num grande funeral, compensação às humilhações terríveis desta vida.

O mundo de Nelson é, com efeito, bruto. Não só bruto, como trágico. A vida se passa de questões sociológicas ou psicológicas. Tudo pode ser resumido pela história da filha do bicheiro que morre esmagada entre um bonde e um ônibus. Nada nos protege. A vida é aberta a todos os acasos, a todas as adversidades.

Assim, a toada trágica de Nelson Rodrigues vai se infiltrando no filme, quase como que à sua revelia, mas de maneira insofismável. Nelson está no marido desempregado, no examante, no fato de existir ex-amante etc. Mais do que ninguém, está nos papa-defuntos. É impossível não reter a cena em que Nelson Xavier descreve um enterro para Zulmira: como a sonoridade de cada palavra é erotizada, a ponto de essa conversa sobre a morte nos parecer insuportavelmente pornográfica.

Em Nelson Rodrigues a infidelidade é uma figura recorrente, e não deixa de ser interessante que certos filmes — A falecida, Boca de Ouro — tragam esse charme. Quanto mais se distanciam de Nelson, mais se aproximam, de forma arrevesada, infiel, envergonhada, mas não menos devota, do que viria a acontecer desde que, com Toda nudez será castigada, Jabor deixou de se basear em "uma estória de" para buscar uma fidelidade canina, e não menos interessante, ao dramaturgo.

Inacio Araujo

PRODUTORA: P. C. Meta

PRODUÇÃO: Joffre Rodrigues e Aluisio Leite Garcia

ROTEIRO E ADAPTAÇÃO: Eduardo Coutinho e Leon Hirszman (baseado em peça homônima de Nelson Rodrigues)

FOTOGRAFIA: José Medeiros

CÂMERA: Dib Lutfi

ELENCO: Fernanda Montenegro, Ivan Cândido, Nelson Xavier, Paulo Gracindo, Dinorah Brillante, Joel Barcellos, Virginia Valli