ENGRAÇADINHA

Haroldo Marinho Barbosa
RIO DE JANEIRO, 1981, COR, 35 MM., 100 MIN.

 

Em 1978, Haroldo Marinho Barbosa faz com o curta-metragem A Nelson Rodrigues um retrato definitivo do escritor. Numa das cenas, Nelson visita as filmagens de Os sete gatinhos, de Neville D'Almeida; a equipe técnica e os atores param para reverenciar aquele homem. Esse evento prosaico foi o único contato diante da tela que tiveram os dois diretores de cinema que talvez mais se aproximaram do universo rodriguiano.

Isso não vai em detrimento dos outros, claro. Os propósitos de cada diretor são muito diversos, como são os de Neville D'Almeida e Haroldo Marinho Barbosa. Os dois representam o yin e o yang rodriguiano: o chulo e o rígido, o escracho e o contido, o vulgar e o sublime. Duas facetas que, no entanto, nunca caíram no pecado de transformar o intencional mau gosto do escritor (ele dizia que só Deus sabia o trabalho que ele tinha para fazer com que seus diálogos fossem pobres) no teatro psicologizante caro ao século XIX.
Engraçadinha, lançado três anos depois de Nelson Rodrigues, revela um diretor ciente das armadilhas que uma adaptação pode carregar. Haroldo Marinho Barbosa leva o romance folhetinesco Asfalto selvagem para a seara do melodrama, terreno em que poderá lidar livremente com a incrível carga realista e simbólica da obra de Nelson. O fato de ser a adaptação de um romance não faz da interpretação ou dos diálogos algo menos teatral. Ao contrário: são o tempo todo aproximadas do teatro, de forma a dar peso à ação, fugindo assim de um naturalismo redutor da dimensão reiterativa do mito.

O que Haroldo tenta pegar do relato de Nelson e fazer seu é algo que de alguma forma ele já havia trabalhado no curta Eu sou a vida, eu não sou morte (1970), adaptação de outro dramaturgo brasileiro, Qorpo Santo: o combate entre os códigos de moralidade da família brasileira e a irrupção de um desejo incontrolável, que quebra toda a codificação e instala os personagens num purgatório da razão. Se em Qorpo Santo os dois pretendentes representavam essas forças conflitantes, aqui elas estão presentes na relação entre Engraçadinha e seu pai, elevado no filme à condição de herói trágico e verdadeira instância dramática da obra.

É impressionante como esse pai, em notável interpretação de José Lewgoy, parece viver para respeitar os códigos de respeitabilidade social, respaldando valores que não constituem de forma alguma aqueles sob os quais ele vive. Basta atentar para a cena da surra, a visita ao ginecologista ou, especialmente, o quebra-cabeça moral de Lewgoy, tentando fazer com que Deus "queira" o aborto do filho de Engraçadinha. Se tudo isso já não fosse suficiente, o filme começa e termina com o discurso de Cláudio Correa e Castro, que será desmontado ponto a ponto. O discurso da hipocrisia que tenta substituir-se à vida da carne, mas que é sempre destronado por ela: esse parece ser o maior ponto de sintonia entre a Engraçadinha de Haroldo Marinho Barbosa e a de Nelson Rodrigues.

Ruy Gardnier

PRODUTORA: Encontro P. C. e Embrafilme

PRODUÇÃO: Paulo Thiago

ROTEIRO: Haroldo Marinho Barbosa

FOTOGRAFIA: Antonio Penido

MONTAGEM: Gilberto Santeiro

MÚSICA: Sérgio Guilherme Saraceni

ELENCO: Lucélia Santos, José Lewgoy, Nina de Pádua, Luiz Fernando Guimarães, Daniel Dantas, Nélson Dantas, Wilson Grey, Carlos Gregório e Cláudio Correa e Castro