França, 1959, p&b, 35 mm, 87’
Acossado narra a trajetória de Michel Poiccard, um ladrão de carros que, fugindo para Marselha, mata um policial. De volta a Paris, ele reencontra Patricia, uma estudante norte-americana. Enquanto perambula pela cidade, Michel ensaia retomar a relação com Patricia, mas ela o denuncia à polícia, que o mata no fim.
A pletórica literatura sobre Acossado é unânime em reconhecer no primeiro longa-metragem de Godard procedimentos fundamentais para toda a sua obra: a assumida presentificação da trama, a desconstrução do enredo tradicional, o gosto (literário-plástico-cinematográfico) pela citação, o tratamento inovador da relação entre os sexos, a autenticidade das interpretações, sempre entre a ficção e a realidade, a liberdade de filmagem, que parte do preestabelecido para se abrir ao acaso, a banda sonora inflacionada, que pontua, informa, comenta e complementa o jogo poético.
Para a discussão em profundidade de Acossado, cada um desses procedimentos merece ser identificado e submetido à análise. Destacaremos aqui apenas um deles, que atravessa diversos aspectos da obra: a subversão particular da linguagem cinematográfica convencional.
Entre seus efeitos mais salientes e discutidos está a maneira como o realizador rompe com a decupagem clássica. Lembremos, porém, que foi justamente por conhecê-la em profundidade que ele conseguiu romper com ela, transformando sua temporalidade e concebendo um filme menos linear e mais fragmentado, sem perder a continuidade do cinema clássico. Condensando esse tipo de decupagem, ele alcança o ritmo próprio do filme e estabelece as bases de um estilo original que não cessou de se renovar. Na abertura de sua Introdução a uma verdadeira história do cinema, Godard comenta que na montagem de Acossado foi preciso cortar tudo o que era possível desde que o ritmo não fosse perdido.
Em outro texto célebre, o cineasta fala de sua concepção de montagem, que anos depois se concretizaria na decupagem iconoclasta de Acossado: “Se encenar é um olhar, montar é um batimento do coração. Prever é próprio dos dois, mas o que um busca prever no espaço, o outro o procura no tempo. (...) É fazer a alma sobressair-se ao espírito, a paixão por trás da maquinação, fazer o coração prevalecer sobre a inteligência, destruindo a noção de espaço em prol da noção de tempo”.
Essa máxima informa sobre o tipo de ruptura promovida pela Nouvelle Vague, mas principalmente sobre o tipo de encenação que vemos neste filme, no qual a ação linear é sacrificada em nome de um estilo. A trama não tem complexidade interna, pelo contrário, pois trata dos últimos quatro dias de Michel Poiccard, que mata e morre, foge de Marselha e se perde em Paris, rouba cinco automóveis para sucumbir como pedestre ao tiro fatal de um policial. Apesar das digressões e das inúmeras elipses, a ficção mantém sua unidade. E o que surpreende o espectador é a heterogeneidade espaço-temporal de cada sequência, a composição variável, as diferentes durações, ora apontando para o estilhaçamento, ora afirmando a unidade. Com densidade ou extremamente breves, as sequências iniciais do filme, pela simplicidade ou pela acumulação complexa dos episódios, nunca perdem o sentido do conjunto. Esse jogo desestrutura as relações de espaço e tempo, como se a montagem vertical que o filme traz duplicasse a representação entre a fabulação e a significação.
Com Acossado surge uma gramática cinematográfica nova, em que a luz estourada recusa o estúdio, e a câmera na mão segue os personagens, criando certa distância em relação a eles ao acentuar o tom documental. A banda sonora também é de uma invenção notável. Os diálogos e as vozes, frequentemente dessincronizados, criam verdadeiros curtos-circuitos entre o som e a imagem. Outro elemento característico é a citação, jogo que multiplica a representação, construindo camadas múltiplas de interpretação. Além de referências históricas, o sistema de citação em Godard constitui a forma do filme. A imagem de Humphrey Bogart, mais do que remeter ao cinema clássico, formaliza o mecanismo de projeção escópica proposto pelo dispositivo cinematográfico. As citações não se limitam ao cinema, mas dão ensejo à série de referências a obras literárias. Toda a Nouvelle Vague está muito marcada pela literatura, da noção de autor às adaptações de obras, passando por inúmeras menções a textos. No caso de Godard, a presença da literatura é incorporada à encenação, como acontece com a citação de Aragon (Au biseau des baisers) e de Apollinaire (Notre histoire est noble et tragique), citados ora por uma voz feminina, ora por uma voz masculina, que emolduram supostos diálogos dos amantes, retirando da representação sua presença imediata e criando um jogo poético em que a opacidade entre os textos explode a trama.
O cinema de gênero (o filme noir) é o mais citado aqui. A citação em Godard é sempre irreverente, pois desconstrói para reenquadrar em um novo contexto, criando uma dialética própria que, no lugar da transparência, faz surgir elementos em conflito. E Acossado é forjado do começo ao fim por conflitos: liberdade e sociedade moderna, homem e mulher, cinema industrial e cinema de autor, som e imagem, fragmentação e continuidade, presente e passado, vida e morte.
Adilson Mendes
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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