França, 1960, p/b, 35 mm, 90’
Na Genebra do início dos anos 1960, agentes secretos se engajam, em território neutro, em um combate cujo pano de fundo é a Guerra da Argélia. O repórter francês Bruno Forestier é coagido a participar do embate pelos colegas, membros de um grupo direitista em luta contra os revolucionários da FLN argelina.
Em Le petit soldat, Godard quer fazer uma espécie de romance político, como Malraux em A condição humana, mas ele próprio não sabe ainda se é de direita ou de esquerda; diletante, só é capaz de pensá-las como possibilidades. Não por acaso, seu herói Bruno Forestier (Michel Subor), filho tanto de Drieu La Rochelle como de Aurélien de Aragon (um de direita, outro de esquerda), é uma espécie de agente duplo. Pego apaixonado no meio da guerra entre a FLN (Frente de Libertação Nacional) argelina e a facção franco-direitista da qual tenta se desvincular, o petit soldat filia-se aos heróis individualistas de Fuller, mas seu pai é o mercenário de Cinzas e diamantes (Wajda, 1959), de quem retoma o lema: “O importante na vida é não se dar por vencido”. Capturado por revolucionários da FLN, Forestier é torturado por algozes que leem o Livro vermelho de Mao. Espantoso pensar, retrospectivamente, à luz da fase maoísta de Godard, que é assim que se lê Mao pela primeira vez em sua obra. No entanto, é exatamente nesse momento que esse filme indefinido e confuso (do mesmo tipo de confusão e indefinição política e moral que Godard percebia no Lang alemão) de um ser estético que projeta sua fase ética como apenas mais uma possibilidade, de um esteta falando de política, cuja única política era a do cinema (a “política dos autores”), revela-se simultaneamente como o filme mais apolítico e o mais político da primeira fase de Godard.
Esse thriller político cujo verdadeiro tema são os poderes miméticos da violência, em que a política se resume a um grande negócio sujo, em que direita e esquerda são rivais miméticos que se reconciliam na tortura, este pequeno filme maldito feito apressadamente, como um bloco de notas, proibido e enxovalhado à esquerda e à direita, talvez tenha sido o maior gesto iconoclasta godardiano, um verdadeiro gesto vanguardista de ruptura simbólica, uma fissura aberta na ordem do simbólico de seu tempo, como prova, aliás, sua imediata interdição – censurado pelo próprio Malraux, então ministro da Cultura. Nesse ponto seria preciso fazer justiça até mesmo aos censores, pois o filme não foi censurado porque Godard ousou tocar abertamente no tabu da Guerra da Argélia, nem mesmo pela forma irresponsável, quase leviana, com que tratou o tema. A censura se deveu, no fundo, ao fato de Godard ter conseguido chegar à verdade, a uma imagem da verdade da Argélia, a tortura. À forma crua e precisa, quase didática, com que filma a tortura.
A violência do fundo encontra seu perfeito correlato formal – a ideia se implica na forma, fazendo-se mais incisiva. Na tortura, a ética encontra a estética – nela Godard vislumbra seu caminho entre o velho lema da “política dos autores”, “o travelling é uma questão de moral” (ideia quase mística da mise en scène como uma ética indissociável da forma), e o novo lema do petit soldat (atribuído a Lênin): “A ética é o futuro da estética”. Chegando a uma imagem da verdade da guerra, Godard também chega a uma verdade do cinema, quando os dilemas do cineasta se revelam espantosamente próximos dos dilemas do torturador. “Às vezes é preciso ter a força para abrir seu caminho com um punhal”, declaram (à esquerda e à direita) os rivais miméticos do filme; às vezes, descobrirá Godard, é preciso ter a coragem para abrir à força o caminho em direção à verdade.
Le petit soldat seria, afinal, um desses filmes em que Godard alterna os dois métodos de captura e revelação da verdade caros ao cinema moderno: o método duro, que consiste em forçar a realidade até o ponto da verdade, em que a câmera é usada como fórceps, instrumento de persuasão e tortura, e o método doce, próximo da fenomenologia baziniana, que Forestier aplica, com sua máquina fotográfica, à amada, Veronica Dreyer (Anna Karina). “Quando fotografamos um rosto, fotografamos a alma que está por trás. A fotografia é a verdade, e o cinema é a verdade 24 vezes por segundo”: a declaração do petit soldat à sua musa marca não apenas a reconciliação de Godard com Bazin – selada nesse nome em que o “véu de Veronica”, metáfora do cinema tão cara a Bazin, é associado à Dreyer, ao suplício de Falconetti em Joana d’Arc, aquele “puro combate das almas” (Bazin) que Godard retoma em Vivre sa vie(1957).
O momento também marca o início do processo de clivagem de Anna Karina, que culmina no “retrato oval” (de Poe), em Vivre sa vie, na história do artista que extrai, a cada quadro, um pouco da alma de sua modelo – Karina terminará por acusar Godard de ter-lhe roubado a beleza. Saída de uma peça de Giraudoux, os olhos “cinza-Velásquez”, a boca de Leslie Caron, a personagem de Karina encarna o ideal estético do petit soldat, mas lhe aponta, com a mão esquerda, para a ética que é preciso encontrar no fim do caminho. De certa forma, uma heroína de Michelet, Veronica começa ali onde acaba a História: só ela é capaz de salvar Forestier do pesadelo histórico em que se meteu e retirá-lo do tempo reto e irreversível dos homens (a revolução, a guerra), para instaurá-lo em um novo ciclo.
Tiago Mata Machado
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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