França, 1962, p/b, 35 mm, 85’
Recém-separada, Nana (Anna Karina) trabalha em uma loja de discos e sonha em ser atriz. Despejada por não pagar o aluguel de seu apartamento, ela passa a se prostituir; primeiro, casualmente, e então, profissionalmente, conduzida por Raoul, um cafetão ‒ com quem tenta romper, até ser assassinada em um tiroteio.
Um “filme em doze quadros”. Com o subtítulo, Godard convoca pintura, literatura e teatro para anunciar a estrutura fragmentária do filme, fundadora em seu cinema. Acompanhamos um período da vida de Nana em doze episódios, relativamente autônomos. Cada um se inicia por um título que antecipa, sob a forma de pequenas listas, alguns dos personagens, locações, motivos e situações dramáticas que estarão em jogo. Com esse recurso didático, que remete a Brecht, o filme põe a descoberto a apresentação do drama, preferindo a série de episódios descontínuos ao encadeamento causal. Explicitada a operação que seleciona o que mostrar, cada episódio explora valores como gratuidade e arbitrariedade: seja no trabalho de câmera, por vezes destacado da ação, seja na narrativa que cede espaço para performances deliciosamente desnecessárias, seja nas passagens desconcertantes entre encenação e imagem documental, inclusive no interior de um mesmo plano. A essa tensão entre escolha precisa e acaso, somam-se outras: se a estrutura sugere distanciamento, os enquadramentos, por outro lado, privilegiam primeiros planos e closes, em uma sondagem obsessiva do rosto de Nana, como se o filme buscasse alcançar a sua vivência interior e o seu mistério. Mesmo que a Godard interesse a prostituição como metáfora (do conjunto das relações sociais e, mais especificamente, daquelas entre cineasta e atores), a trajetória da personagem é antes motivo para indagações existenciais, e mesmo metafísicas, do que para o exame da historicidade de um problema social. Da ruptura com a vida familiar, passando pela entrada na prostituição, à morte bruta, o percurso de Nana não deixa de ser o de uma ascese (abandonando-se ao desejo de outros, para sobreviver).
É também uma renúncia o que o filósofo Brice Parain prescreve em seu diálogo com Nana: o desapego (do cotidiano) como condição para uma “vida com o pensamento”. Em um filme tão conversado, no qual a palavra iguala a imagem em importância, desconcerta uma espécie de “devir cinema silencioso”, que se coloca em diferentes níveis: na caracterização de Anna Karina (inspirada em Louise Brooks), no corte do som em partes de segmentos, na sequência final, quando o diálogo entre Nana e o jovem por quem se apaixona é transmitido via letreiros e, notadamente, no célebre paralelo com a Joana d'Arc de Dreyer, que Nana assiste em uma sessão de cinema.
O gosto pelos paradoxos (no sentido da proposição que desafia o que é compartilhado pela maioria) se faz presente em muitas provocações à linguagem corrente, brincadeiras de cinema que, neste filme tão rigoroso, configuram recursos semânticos. Por exemplo, nas variações em torno de “como filmar uma conversa”, em que a recusa ao campo-contracampo gera formas significativas: Nana e Paul de costas para a câmera, filmados em planos alternados que acentuam a sua separação e isolamento (na primeira cena), e Nana e Raoul filmados por uma câmera movente que se detém sobre a cabeça do cafetão (de costas), justamente quando ela oblitera nossa visão de Nana (figurando, na conversa em que ela sela seu acordo com Raoul, mais um lance de seu aniquilamento subjetivo). E também na morte de Nana, a um só tempo arbitrária e desmotivada (narrativamente), mas preparada e selada por uma série de citações e referências – como se respondesse a uma necessidade postulada pela forma, pela “estética da apropriação” (Fieschi, 1962) godardiana.
De apropriação em apropriação, Godard constrói o filme como um retratista. No último episódio, um trecho de O retrato oval é lido pelo próprio cineasta, em over (enquanto vemos o homem jovem lendo em cena as obras completas de Poe). Se Nana é retratada, não é apenas pelo primado de seu rosto (que a câmera isola em muitos closes). A novela de Poe se junta a outros textos, fragmentos que vão “dizendo” a personagem e seu destino, pela proposição de múltiplas conexões: a historieta de uma galinha (contada por Paul) parece cifrar o sentido de toda a trajetória, o diálogo entre Jeanne (Falconetti) e o padre Massieu (Artaud), na cena do filme de Dreyer, assim como a história de Porthos, mosqueteiro de Dumas, contada por Parain, sugerem aproximações e contrastes com a sua experiência e prenunciam sua morte. Essa operação de retratar Nana por meio de apropriações encontra uma imagem sintética na frase de Rimbaud (“eu é um outro”), dita por ela na delegacia. Citação que traz outras ressonâncias: como nos closes e nos olhares de Nana para a câmera, ela remete à realidade do corpo de Anna Karina, que suporta a ficção de Nana, a qual, por sua vez, retrabalha elementos da biografia da atriz. Para terminar retomando as tensões e os paradoxos, retratar em Viver a vida implica no abismo da ficção (uma história que remete a outra, que remete a outra) e na verdade de um rosto. Entre tantas aproximações, Nana mantém o seu mistério.
Cláudia Mesquita
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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