França, 1964, p&b, 35 mm, 95’
A ingênua Odile se envolve com uma dupla de bandoleiros e revela a existência de uma fortuna escondida na casa de sua tia. Franz e Arthur armam um plano para roubar o dinheiro e seduzem Odile, envolvendo-a nessa trama absurda e mal planejada. Às vésperas do assalto, eles matam o tempo com frivolidades.
O cinema de Godard tem como grande marca o signo da mudança. Se ele se atualiza, suas fases anteriores se tornam obsoletas? Há algo nessas obras que ainda pode ser novo? Uma mudança não pressupõe superação, mas um câmbio de perspectiva na maneira de formular e pensar imagens em relação ao mundo. É como redescobrir o uso das ferramentas disponíveis. Logo no começo de Bande à part, quando o trio de protagonistas se encontra pela primeira vez, no curso de inglês, a professora logo arremessa a noção de que moderno e clássico são equivalentes. Seus filmes, e os mecanismos neles engendrados, consolidam a noção do clássico que os precede e simultaneamente o tornam mais abrangentes, pois revelam as possibilidades que esse clássico permite. Se pensarmos na noção de ruptura, ela parece pressupor independência. E não há independência em Godard, seu cinema não é isento da tradição que o precede. O procedimento profundamente dialético em seus filmes os torna novos e clássicos incessantemente. E nem por isso menos dependentes de Shakespeare ou de Griffith.
Curiosamente, Godard filma Bande à part logo depois de finalizar O desprezo (1963). Ou seja, depois de um rendez-vous com a Odisseia, ele parte para o que alguns chamam de "adaptação" do romance policial Fool's Gold, de Dolores Hitchens. Depois de O desprezo – obra grandiosa, gesto majestoso –, ele realiza uma obra vagabunda. Essa travessia do sublime ao vulgar também revela muito da percepção godardiana da tradição e da condição eternamente ambivalente do cinema. Se já não pode fazer os filmes que o levaram a querer fazer filmes, o que ele faz? Há duas forças em jogo, uma de atração e uma de repulsa, e elas nunca se anulam nesse jogo com o gênero, no diálogo com a cultura de massa. "Uma mulher e uma arma", a máxima griffithiana para o sucesso de bilheteria do verão. Mas é aí que se inicia o processo de recusas de Godard – apesar de sua afeição por axiomas, seu maior talento sempre foi o de ignorar as próprias regras. Assim começa sua antiadaptação do romance, com absoluto desinteresse pelos detalhes mais funcionais do enredo. Ele desmonta o novo brinquedo para entender como funciona. Compreende a mecânica das peças, mas jamais se curva ao seu utilitarismo. Ele o transforma em um organismo que busca funcionar sem ser funcional. É sua brincadeira subversiva de redescobrir um lugar para as peças sem desdenhar de suas potencialidades.
No campo da ambivalência, Godard opõe (ou equilibra) a aula de inglês e sua perspectiva intelectual com a cena na qual os jovens bandidos aguardam a garota enquanto leem notícias de crime no jornal. A noção anterior de grande arte contrasta com o mundo ordinário, a aleatoriedade dos fatos, a desrazão e a vulgaridade da violência. Os personagens se alternam lendo manchetes como se narrassem pequenos contos, ou trechos de revistas pulp, como se tudo estivesse no campo da ficção. Até mesmo a condição marginal deles parece ser levada pouco a sério – como se fossem personagens brincando com armas imaginárias.
Diante de nós, um fiapo de suspense policial. Visto sobretudo a partir dos afetos desses três jovens, Odile, Arthur e Franz. Não existe propriamente um narrador, como se esperaria do gênero. Mas há uma narração: Godard se livra em duas ou três frases da ocupação de nos situar na trama, para em seguida investigar as turbulências emocionais do trio diante da situação e durante suas tangentes. Há também certo deboche da ingenuidade no enlace de afetos, em tom de paródia do cinema norte-americano. Mas a inocência incongruente de Anna Karina nos conquista com uma doçura que prescinde de realismo. Há algo de fascinante nesse processo de se tornar testemunha (ou cúmplice) da feitura de um filme que a todo instante se revela como tal. Odile (ou Karina) desdenha da ideia de bolar um plano – "um plano, pra quê?", ela indaga, olhando para o espectador. Somos cúmplices desse plano mal ajambrado e temos a sensação de que tudo é possível. Não é isso o cinema? Um minuto de silêncio que dura para sempre, uma coreografia espontânea, um recorde improvável, uma série de desencontros e a promessa de uma continuação tropical em cinemascope e technicolor.
O crime é o de menos. É o que os une, coloca seus afetos e seus corpos em movimento, mas certamente não é isso que define quem são. No processo de inevitável fracasso, eles pulsam vigorosamente – como jovens e como personagens, querem viver para sempre, extrapolar quaisquer limites impostos. No entanto, serão apenas eternamente tolos, bandidos inventados, radicais livres.
Jean-Luc Cinéma Godard. Quando assina assim, o cineasta já se inscreve essencialmente como integrante do tecido vivo do filme. Ele está dentro e fora de cena. Ele põe tudo em movimento, inclusive as ruas de Paris, o fluxo do rio e a textura fina do céu cinza. Esse domínio pressupõe algo aparentemente simples: saber olhar. Godard opera afetos e maquina movimentos com o poder de um demiurgo e ao mesmo tempo com o servilismo de um simples operário. Aí está a complexidade de seu cinema.
João Toledo
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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