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Une femme mariée (Uma mulher casada)

França, 1964, p/b, 35 mm, 98’



Esposa de aviador, Charlotte frequenta um ator de teatro nas constantes ausências do marido, mas não sabe qual dos dois escolher. As coisas se complicam quando ela engravida, sem saber quem é o pai. Filmando o triângulo, Godard examina a mercantilização das relações pessoais – sobretudo para a mulher.

O roteiro não é exatamente original: Charlotte é uma esposa jovem e atraente, que se apaixona por outro homem e vive com ele um romance. Robert, ator de teatro, quer que ela se divorcie de Pierre, um piloto de aviões que se ausenta bastante de casa a trabalho e tem um filho do primeiro casamento, criado com a ajuda de Charlotte. Ela não consegue se decidir entre o marido e o amante e leva adiante as duas relações, dissimulada e despreocupadamente. As coisas se complicam quando ela se descobre grávida, sem saber qual deles é o pai – conflito que não encontra resolução. Talvez a novidade de Uma mulher casada esteja na maneira como o triângulo amoroso ganha cena, desprovido de drama. O preto e branco da fotografia não cria contrastes expressivos, profundidades ou zonas de sombra: sobre a superfície alva dos lençóis vemos uma sucessão de gestos e movimentos mecanizados e repetitivos – as mãos se procuram, as pernas se entrelaçam, os corpos se aproximam –, em um trabalho de fotografia marcado por uma claridade homogênea que sugere frieza, a despeito da sugestão erótica. Seja com o amante, seja com o marido, o tratamento dado aos momentos de intimidade de Charlotte é o mesmo: os planos iniciais são replicados nos meados da narrativa, substituindo-se apenas o rosto que a beija, a mão que a toca.

Assim, em gestos decupados e bem medidos, as cenas de Charlotte com Robert e, posteriormente, dela com o marido Pierre encontram uma curiosa equivalência. O corpo feminino surge fragmentado em uma série de primeiros planos da mão, dos ombros, do joelho, das coxas e do ventre, como um território cuidadosamente mapeado para ser explorado e possuído pelo homem da vez. Estabelece-se, com essa operação, um campo para a relação amorosa que resta parcial, fragmentário, sempre tensionado pelo extracampo.

Em contraste com as sequências da intimidade, há as cenas de Charlotte transitando entre espaços familiares: sua casa, o apartamento onde se encontra com o amante, a cidade. Nesses momentos, Godard paga seu tributo ao neorrealismo, valendo-se de planos gerais e planos-sequência em que vemos Charlotte passar pelos lugares, sem necessariamente se fixar em ações específicas. A mulher é aquela que circula: atravessa a loja de departamentos sem comprar nada, passa do quarto à sala de estar e daí à cozinha, desce de um táxi para entrar em outro.

Se a maneira como seu corpo foi filmado nas cenas íntimas já fazia dela um objeto – algo que se pode pegar com a mão –, o procedimento de apanhá-la constantemente em circulação reforça a associação entre mulher e mercadoria. A presença massiva da publicidade reforça a sugestão: os anúncios de sutiã e outros produtos femininos compõem os cenários por onde ela passa, invadem as revistas femininas que ela lê e mesmo sua fala é afetada pelo jargão publicitário ao apresentar sua casa ao convidado para jantar. O procedimento, adotado sem sutilezas, sublinha a postura crítica do diretor e não camufla a inspiração marxista: nos escritos de Marx, lemos como mulher e mercadoria são parte do sistema de desejo e consumo que sustenta o capitalismo. Godard mais uma vez busca criar relações entre as representações socioculturais e as estruturas econômicas e políticas – o amor e a sexualidade são – como as guerras às quais o diretor não deixa de fazer referência (no cinema frequentado por Charlotte e Robert, está em cartaz Noite e neblina, de Alain Resnais) – moldados por essas estruturas. Em um filme que recusa o romantismo em favor do distanciamento crítico, o affair de Charlotte e Robert não poderia ter outro desfecho que não a suspeita: na sequência final, ela insiste em perguntar ao amante se ele não está atuando, como em mais uma de suas peças, ao declarar seu amor a ela. Robert nega enfaticamente, mas sua resposta reforça os clichês que se multiplicam no decorrer da narrativa. De fato, a frase que mais ouvimos dos personagens é “eu te amo”, mas sempre pronunciada de modo esvaziado, automatizado, desprovido de emoção, como que tornando oco o significante.

A consequência desse reforço dos clichês é a desmistificação do amor, já anunciada na equivalência entre os momentos íntimos com Pierre e Robert, que contraria as expectativas dos triângulos amorosos clássicos, em que o amante é aquele que garante emoções tórridas, enquanto o marido oferece segurança, estabilidade e tédio. Dessa vez, o triângulo é semelhante àquele que Charlotte tenta traçar ao medir a distância entre seus mamilos e a base do pescoço, em busca da simetria corporal perfeita da Vênus de Milo: um triângulo equilátero, perfeitamente simétrico. Ao fazer duas personagens (a própria Charlotte e sua empregada) “tropeçarem” no termo “equilátero”, por não saberem seu significado, Godard abre na cena uma chave de análise para sua obra. De amor em amor, na equivalência dos lados do triângulo, os problemas permanecem os mesmos, arraigados em uma estrutura que produz e sustenta, a um só tempo, as propagandas de sutiã e os campos de concentração, o amor e o horror.

Carla Maia



Produção

Apoio

Correalização

Copatrocínio

Realização


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