França, 1965, p/b, 35 mm, 98’
O agente Lemmy Caution (Eddie Constantine) chega de “países exteriores” a Alphaville, cidade futurista comandada por uma inteligência artificial que ele precisa destruir. Caution também deve libertar Natasha von Braun (Anna Karina) daquele lugar, onde palavras como “amor” e “por quê?” foram proibidas.
Alphaville nasce do desejo do ator norte-americano Eddie Constantine de voltar a trabalhar com Godard. Popular na pele do agente do FBI Lemmy Caution, herói fictício de filmes policiais de baixo orçamento, Constantine havia contracenado com o cineasta em um curta de Agnès Varda e atuado em La paresse (1961), sketch de Godard para Sept péchés capitaux. Godard aceita a proposta do ator e imagina um filme de gênero, entre a ficção científica e o policial, em que o mesmo Lemmy Caution atuaria ao lado de Anna Karina. Sob a identidade falsa de um correspondente do jornal Figaro-Pravda, Caution chega a Alphaville em seu Ford Galaxie depois de uma longa viagem. Seu objetivo é destruir Alpha 60, cérebro eletrônico que controla a cidade e põe em risco os “países exteriores” – a voz distorcida de Alpha 60 prenuncia os sussurros em off do cineasta, ouvidos em seus filmes posteriores.
O futurismo de Alphaville tem pouco de artifício. Conforme explica uma frase dita primeiro por Natasha von Braun (Anna Karina) e em seguida por Alpha 60, “ninguém viveu no passado. Ninguém viverá no futuro. O presente é a forma de toda vida”. Assim, o cenário da cidade do futuro são locações reais oferecidas por Paris naquele inverno de 1965: os novos edifícios de La Défense e de Boulogne-Billancourt, os neons das fachadas, as torres residenciais que despontam nas periferias. Aprofundada em Duas ou três coisas que eu sei dela (1966), a crítica de Godard ao modernismo arquitetônico, então em franca implantação, já aparece em Alphaville. Diante da torre de um HLM, Caution diz em off, em um trocadilho: “hôpital de la longue maladie” (“hospital da doença duradoura”).
Não se trata simplesmente de fazer troça com os “grands ensembles”, cujo aspecto de “gueto” começava a ser notado, pelo cinema inclusive. Mais abrangente, o alvo de Alphaville é o império da racionalidade moderna, de que os conjuntos habitacionais que proliferavam em Paris eram um emblema, mas não o único. A arquitetura modernista e alguns de seus fundamentos – como a transparência, que fascinara Eisenstein – ocupam um papel de destaque, a um só tempo criticados e vistos com encanto. É notável a esplêndida coleção de escadas em caracol com guarda-corpos de vidro ou ausentes, nas quais a câmera se detém reiteradamente. A transparência da fachada do Grand Hôtel da rua Scribe, onde o protagonista se hospeda, aparece em esmerados planos-sequência que desvelam saguão, elevador e corredores. Nesses planos longos, os movimentos de câmera são por vezes pouco humanos, maquinais, como se o próprio Alpha 60 estivesse no controle.
Godard convoca ainda elementos da literatura, do cinema e da vida, afirmando sua política de fazer do cinema um instrumento crítico no universo da arte, propondo hipóteses e criando, à la Warburg, relações iconológicas e temáticas surpreendentes. Uma das hipóteses de Alphaville é o parentesco entre o western Rastros de ódio (John Ford, 1953) e o policial Brotinho venenoso (Bernard Borderie, 1953), que havia lançado Constantine na França: ambos, assim como Alphaville, contam a história de um herói que chega ao território inimigo e liberta uma jovem mulher. O território desbravado no filme de Ford é o Oeste norte-americano, e Casablanca em Brotinho venenoso. Este último cria uma cascata de falsas identidades e usa códigos do cinéma noir, com cenas em geral escuras, elementos reencontrados em Alphaville – rodado à noite com pouca iluminação e película de alta sensibilidade, o filme tem planos bem contrastados, alguns deles quase inteiramente negros.
Exemplares dos livros citados aparecem no filme, praxe no cinema de Godard. Caution e Natasha são vistos lendo trechos de Capitale de la douleur, embora nem todos os poemas recitados por eles pertençam de fato ao volume, lançado em 1926, pouco depois de Paul Éluard separar-se de Gala. “Capital da dor”, título polissêmico por si só, ganha novas conotações ao sintetizar a melancolia de Alphaville e ao fazer referência ao divórcio entre o cineasta e sua musa.
Menos explicitamente reivindicado, La France contre les robots, ensaio de Georges Bernanos escrito no exílio brasileiro, parece ter alimentado a cidade do futuro godardiana, mais até que a Metrópolis de Lang. Bernanos fala da “civilização das máquinas” inaugurada com a Segunda Guerra, em que pela primeira vez se viabilizava a aniquilação da humanidade pela humanidade. Para Bernanos, apenas a civilização francesa, que lutara “para formar homens livres”, seria capaz de recusar esse “paraíso dos robôs”, comum à plutocracia dos Estados Unidos e ao totalitarismo soviético.
Em um terrível diagnóstico de seu tempo, Alphaville se ergue contra a racionalidade moderna, contra o totalitarismo disfarçado de avanço tecnológico. Em uma cena chocante, homens que manifestaram atitudes ilógicas são fuzilados em uma piscina, sistema de execução massiva que, assim como os números de identificação tatuados na pele das mulheres de Alphaville, evocam métodos nazistas de extermínio. O futurismo de Alphaville talvez seja na realidade nutrido pela nostalgia – e pelo desgosto – do presente.
Lúcia Monteiro
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