França, 1966, cor, 35 mm, 90’
A jornalista Paula Nelson (Anna Karina) vai a uma pequena cidade francesa para encontrar o marido. Chegando lá, descobre que ele foi assassinado e começa a investigar o crime. Ela se depara com o submundo da política e suas conspirações, espionagens, traições e manipulações.
Foram necessárias algumas desilusões do cinema moderno e a imersão da Europa no mundo do consumo para que Godard finalmente revelasse a identidade entre as cores das bandeiras da França e dos Estados Unidos. Made in U.S.A. é um filme francês sobre os Estados Unidos discutindo o que significa ser um produto cinematográfico made in USA? Ou um filme made in USA mirando a França de então? Na época, Godard assumia seu lado brechtiano ao não rejeitar associações: apostando nas sobreposições geopolíticas, ele procura, nos fragmentos de Paris, revelar algo da mafiosa Atlantic City.
Nesses “anos Karina”, a relação de Godard com os Estados Unidos é de crítica à máquina norte-americana de publicidade, mas de inspiração nos mestres como Samuel Fuller e no ciclo noir. A paixão da Nouvelle Vague pelo cinema norte-americano sempre suscitou a acusação de despolitização, mas a escolha dos cineastas norte-americanos para o seu panteão foi chamada de politique pelo próprio grupo. O deslocamento da Nouvelle Vague para o centro do cinema francês e a transformação do gesto rebelde em um segmento de consumo (o que é hoje o mercado de “arte e ensaio”) parecem ter gerado um novo tipo de mal-estar: o do cinema autoral em relação ao que seriam seus próprios clichês (a psicologia, a profundidade, a mensagem política). Em Made in U.S.A., a resposta à crise assume a contaminação de estilos, o despojamento, o desconforto face ao lugar do cinema na sociedade do espetáculo. Afinal, o contexto francês é de rebaixamento dos horizontes, crise da República e da política que em breve incendiaria 1968.
Em Made in U.S.A., os personagens antigregários do filme noir são mais uma vez estratégicos para a investigação godardiana do mundo moderno, já que vagam sem moralismos. Godard segue Orson Welles e filma com pouco, a partir da iluminação, de fragmentos de cenário e de enquadramentos. Seu mergulho no submundo tem algo de mabusiano, revelando a influência de Fritz Lang na visão política do Godard pré-1968. O olhar de Lang não excluía o cinema nem a postura do cineasta no jogo de forças e no controle das massas. De Lang, Godard parece herdar a consciência aguda do papel do cinema no teatro da política e da guerra.
O petit Donald, personagem de Jean-Pierre Léaud, chama-se, não por acaso, Donald Siegel. Como em Vampiros de almas (1956), de Siegel, Made in U.S.A. revela a disseminação da paranoia e do medo do espaço público. Siegel falava de alienígenas e, por tabela, de uma sociedade totalitária. Os personagens de Godard são como corpos vampirizados por cartazes, slogans e fragmentos confusos da guerra informacional: John F. Kennedy assassinado em 1963, a repressão às lutas anticoloniais, a Guerra Fria. No fim do filme, a inserção-chave é “Esquerda, ano zero”, referência ao esvaziamento semântico e político da esquerda e à Alemanha destruída, onde Rossellini filmara. Godard mostra uma esquerda em ruínas, questionando os métodos e linguagens dos partidos, especialmente os influenciados por Stalin.
Como no filme noir, em que é difícil julgar quem é quem, esquerda e direita se misturam, indicando a falta de transparência do jogo político, visto como teatro e ruína. Essa ideia é reforçada porque nunca vemos o evento principal em torno do qual gira o filme, que está no passado. É para esse espaço ausente que se volta a narração, que se estabelece na chave reflexiva do “balanço de experiência”.
Paula Nelson segue sua jornada solitária de investigação e reflexão, duplo movimento que marcará a narrativa. O filme fará também de Paula um objeto da investigação: “quem sou eu?” – pergunta ela. Apesar do desabafo (“Como não vomitei em meio ao dinheiro, ao sangue e à política?”), ela elimina seus adversários com os mesmos métodos e o mesmo estilo de fazer política que é o alvo de Made in U.S.A.: queima de arquivos, chantagens, manipulação. Quando é avisada pelo burocrático detetive Aldrich de que seu caso foi arquivado pela polícia, ela sorri.
O filme parece incluir Paula no duro diagnóstico sobre as engrenagens do submundo da política. Godard aproxima-se de Fuller, que desconfiava da política mas revelava as engrenagens do poder. Em Made in U.S.A., Paula tateia no escuro de uma democracia degradada pelo marketing e de uma ideia de Europa em crise pelas lutas anticoloniais. No plano da linguagem, o filme é pródigo em estilizar cenas (como a morte do petit Donald) e fazer delas instantes de uma perturbadora poesia, verdade abrupta que interrompe o kitsch da mise-en-scène. No fim, em tom autocrítico, Paula assopra algo importante para a obra posterior de Godard: o fascismo – diz ela – é algo que se combate fora, mas especialmente dentro de nós mesmos. O cineasta desloca a crise para a dimensão da subjetividade e da linguagem.
Alfredo Manevy
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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