França, 1966, p&b, 35 mm, 110’
Paul trabalha como pesquisador em um instituto. Ele torna-se amante de Madeleine, jovem cantora, mas se encanta também por Elisabeth. Interessado pelo perfil das garotas francesas dos anos 1960, Paul é levado a participar de causas sociais e estudantis por influência de um amigo.
Se o cinema de Godard é um puzzle, feito de colagens de elementos bastante heterogêneos, Masculino, feminino é um filme exemplar desse espírito de junção de estilos e referências. Sua própria gênese dá conta do quanto o diretor foi longe na inspiração da sua fábula. Pensou em adaptar dois contos de Guy de Maupassant, Le signe e La femme de Paul, além de ter pensado, nesse meio tempo, em fazer um filme sobre A filosofia na alcova, de Marquês de Sade. Um filme “boneca russa”, como salientou Alain Bergala. Do primeiro e do terceiro texto, só sobraram referências específicas à prostituição e a um romance “libertino” para a época, entre um rapaz e três moças. O Paul do segundo ganhou os ares de Jean-Pierre Léaud, “egéria” masculina da Nouvelle Vague. O roteiro atualiza a história de Maupassant sobre a depressão mortal do macho depois que descobre que sua mulher tem um caso lésbico. O masculino esmagado pelo empoderamento feminino... poderão pensar alguns. Mas Godard não vai tão longe. Masculino, feminino é um filme pouco lisonjeiro com as mulheres, como outros do autor podem ser. Elas são xingadas por homens desconhecidos ou pelos maridos, oferecem-se como prostitutas desesperadas, são mostradas como fúteis e como objetos de consumo.
Como em todo filme de Godard, a fábula pode ser resumida em uma linha e, no fundo, importa pouco. Godard é um cineasta das formas e é nelas que ousa e vai mais longe. A primeira ousadia formal é trazer para o seio de um filme de ficção questões que envolvem outros tipos de cinema, mais ancorados na verdade das representações, entre a sociologia e o documentário. Deles, Godard trouxe a forma do filme-enquete. O jovem Paul trabalha em um instituto de pesquisas, conhece meninas consumidoras de revistas de moda e comportamento e trava com elas verdadeiras discussões sociológicas sobre vida, comportamento, sexo e política. Truffaut chegou a dizer que Godard teria criado para Léaud o personagem de um entomologista (estudioso dos insetos), por se interessar tão de perto pelos objetos-sujeitos que encontra. Truffaut na verdade estava devolvendo a Godard algumas críticas em forma de gentis animosidades, em uma amizade que começava se esmorecer e que terminaria não muito depois. Paira sobre o personagem de Léaud a sombra de Morin e Rouch em Crônica de um verão, rodado cinco anos antes. Até Godard reivindicou o filme como o início de sua fase mais sociológica, que duraria até o início dos anos 1970.
A forma da entrevista é assim retrabalhada por Godard e ocupa lugar central na trama. Godard reserva para cada personagem principal uma entrevista que, na realidade, ele mesmo fazia. Cortadas na montagem, a imagem e a voz do diretor são substituídas por um interlocutor diegético. Nas conversas, os atores mesclam textos escritos de antemão e improvisações; o ator aparece com sua naturalidade e sensibilidade por detrás da carapaça do personagem ficcional. Godard é um cineasta moderno para quem dirigir um ator não significa fazê-lo criar necessariamente uma postura corporal, uma voz ou uma psicologia outra que a sua própria. Seu desafio era fazer coabitar ator e personagem dentro de um mesmo corpo, sem que um sufocasse o outro.
Masculino, feminino é, no fundo, um filme sobre as fraquezas da profissão de ator. Diante do diálogo com seu colega de cena, os atores-personagens hesitam, intimidam-se, gaguejam, recusam-se a responder, mostram-se vulneráveis. E Godard se entusiasma, tanto que repete o dispositivo da entrevista do ator em outros filmes. Nada melhor para um entomologista sádico do que ver a fraqueza e o desespero do seu inseto.
Godard era um cineasta pop, e neste filme rende-se definitivamente ao charme das cantoras populares francesas. Sondou Sylvie Vartan para o papel principal e Françoise Hardy para um secundário. Acabou com a recém-lançada Chantal Goya, que encontrara nas páginas de uma revista juvenil. Godard usa suas atrizes para fazer uma crítica contundente ao espírito “menina moça” veiculado pelas revistas e embaraça uma garota-Capricho em uma das entrevistas ao lhe perguntar sobre o futuro do socialismo. “A política do pop” poderia ser um subtítulo adequado para Masculino, feminino em mais uma das convivências entre elementos díspares sobre os quais a obra de Godard se funda.
O cineasta impregnou o espírito dos cinéfilos com a filmagem do triângulo amoroso. Sem fazer referência ao romance lésbico, o filme talvez tenha a única imagem em que Godard aborda a homossexualidade (os dois rapazes se beijando no banheiro do cinema). O motivo plástico e temático da cama para três, sem sexo, mas com muita reflexão e discussão (como convém a um intelectual francês), foi retomado diretamente por admiradores da Nouvelle Vague de diferentes épocas: Jean Eustache (A mãe e a puta [1973]), Christophe Honoré (As canções de amor [2007]) e Joaquim Pedro de Andrade (O homem do pau-brasil [1982]). Prova, se necessidade houvesse, da permanência e atualidade das matrizes formais godardianas.
Pedro Maciel Guimarães
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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