Inglaterra, 1968, cor, 35 mm, 99’
Em um arranjo polifônico e ensaístico, Jean-Luc Godard combina documentário e encenações ficcionais, alternando o registro dos Rolling Stones durante os ensaios e gravações da canção “Sympathy for the devil” com discursos e ações sobre política e estética no fulgurante ano de 1968.
“Um mais um faz dois”: é o que diz uma das cartelas de One plus one, também conhecido como Sympathy for the devil, título da versão dos produtores Michael Pearson e Ian Quarrier, levemente diferente do corte final do realizador e veementemente recusada por ele. Multiplicado, assim, por dois na ocasião do lançamento, após ruidoso desentendimento entre Godard, Pearson e Quarrier, One plus one é, entre construção e desconstrução, todo movido pelo signo da duplicação, do desdobramento, bem como pelo que há de irreconciliável entre dois – dois gestos, dois sistemas, dois mundos.
Na estrutura disruptiva do filme, há duas partes bem distintas. Um dos segmentos, o que deu origem ao título dos produtores e que se pode considerar como documental, consiste no registro dos Rolling Stones durante a criação dos arranjos, ensaios e gravação da canção “Sympathy for the devil”. A câmera passeia pelo estúdio enquanto os músicos repetem letras, notas e acordes em busca do groove próprio da música, que Godard captura no momento de sua emergência, na pulsação do seu processo criativo, antes que ela seja empacotada pelo mercado fonográfico e pelo espetáculo midiático. A canção nunca será executada integralmente em sua orquestração final no filme assinado por Godard. E é essa a pequena (mas imensa) diferença entre as duas versões do filme. No jogo ensaístico e intrigante de Godard não há espaço para o acabamento: nem da música, nem do pensamento, nem da história.
Godard não se contenta em documentar a gravação de uma canção dos Rolling Stones, especialmente durante o fulgurante ano de 1968: ele a faz emergir em um campo disjuntivo de falas, uma espécie de ferro-velho verbal e ideológico, um terreno de citações e discursos em desmonte e remonte que pavimenta o que seria o segundo segmento do filme. Este é composto de microficções de cunho político, que reúnem situações encenadas ao modo brechtiano: um grupo de alguns Black Panthers que manuseiam muitas armas num ferro-velho, torturam mulheres brancas enquanto leem, repetem e gravam manifestos e programas subversivos; uma entrevista em que Eve Democracy responde em concordância quase silenciosa a perguntas retóricas sobre ativismo, arte, cultura, drogas e sexo; o movimento em uma banca de revistas pornô-nazi, onde se leem em voz alta discursos fascistas e torturam-se hippies que se manifestam contra a Guerra no Vietnã e em defesa de Mao; uma jovem picha nos muros e carros de Londres slogans revolucionários, tais como cinemarxism, freudemocracy. Tudo isso entrecortado por uma voz off que cita trechos de um romance policial-erótico-político, cujos personagens vão de Fidel Castro a Walt Disney.
Trama-se, assim, uma polifonia em que discursos políticos e música pop emergem no limiar entre o escombro de doutrinas ideológicas, das ideologias tornadas commodities, e a emergência de uma voz pungente e nova. Não é por acaso que o tema da gravação talvez seja o elo mais evidente entre as duas partes do filme. Em One plus one não há diálogos nem monólogos, mas abundam elocuções, discursos que estão o tempo todo sendo proferidos, registrados, repetidos, retomados: a presença constante de entrevistas, gravadores e câmeras parece sinalizar para as diversas operações em que a fala é capturada e lançada em sistemas de circulação.
Por meio do ensaio – forma do pensamento vivo e da abertura por excelência –, Godard aponta para (e simultaneamente combate) os riscos da talvez inevitável transformação de uma fala vivaz, e política, enquanto ato inaugural, em uma língua ou linguagem mortificadas. Mostra-se também atento ao movimento entre a tomada da palavra (ato de fala que faz emergir o até então inaudível e que marcaria maio e todo o ano de 1968) e a retomada da palavra (movimento de assimilação dos novos discursos e sujeitos de discurso por velhas sintaxes e sistemas simbólicos e mercadológicos). O vigor político de One plus one e sua capacidade de antecipar a dobra de um processo ainda em curso residem no entendimento dessa operação de desdobramento, que corresponde às disputas no seio das dinâmicas próprias da cultura (a cultura que Godard não cansa de criticar). Nesse sentido, o filme pode ser considerado como um manifesto reverso, pois aberto e antidogmático, por uma linguagem e um cinema vivos, atentos à virada da assimilação pelas formas usadas da cultura e do capital e à altura, enfim, de 1968 e suas revoluções. “Estamos atrasados”, bradou Godard naquele mesmo 1968, em Cannes, constatando a ausência de filmes sobre/com estudantes e trabalhadores na programação do festival e defendendo, por isso, o seu cancelamento diante da urgência das ruas. De olho no olho do furacão da história, Godard não permitiria ao cinema estar em descompasso outra vez. One plus one registra, assim, a emergência não apenas de uma canção popular, mas de um pensamento em ação, o ensaio de um modo de pensar a história antes mesmo que ela se faça ou, para dizer como Godard, um modo de (se) confundir (com) a própria história.
Amaranta Cesar
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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