França, 1968, cor / p/b, 16 mm, 100’
Produzido entre julho e agosto de 1968, Um filme como os outros é a primeira reflexão de Godard sobre os acontecimentos do maio de 1968. Ainda era cedo para estabelecer sua imagem definitiva, e Godard os aborda alternando cenas de maio e uma conversa mais serena entre operários e estudantes sobre o que se passou ali.
Um cineasta que se torna operário. Tal é a ideia evocada pela imagem que apresenta o título deste filme. Nela, vê-se a fotografia de jovens trabalhadores executando com esmero a colocação de tijolos em uma construção. Essa aproximação entre o filme e a construção coletiva/anônima, obra de fascínio e obra utilitária, obra-poema e obra-cálculo, caracteriza o projeto de cinema em jogo naquele momento da trajetória de Godard.
A ausência de créditos gera dúvidas sobre a autoria do filme e a problematiza, como se ele não reivindicasse uma assinatura, optando, assim, por uma anti-hierarquia radical. Em algumas revisões, o filme é creditado como primeira produção do Grupo Dziga Vertov, noutras como produção de Godard com o grupo Atelier de Recherche Cinématographique ou, ainda, com os États Généraux du Cinéma. Um filme tal qual tantos outros, como sugere o título.
Impossível não associá-lo aos então recentes événements de maio de 1968. Rodado e montado nos meses seguintes à eclosão de manifestações que ocuparam a França, o filme é sobre o maio, por causa dele e, sobretudo, sintonizado com as propostas de cinema que ele suscitou. Um filme como os outros é o cinema na sua dimensão discursiva, verborrágica, urgente, militante de acordo com o que afluía em torrentes pelas ruas, praças, muros e cartazes. É, sobretudo, um filme contra o cinema de entretenimento e espetáculo.
O filme mostra o encontro entre três estudantes de Nanterre e dois operários da Renault. Entre as imagens do encontro, intercalam-se tomadas feitas nas ruas documentando o maio de 1968 e reuniões entre militantes. Na banda sonora, acompanhando a natureza dialética das imagens, há o som direto da conversa entre os estudantes e os trabalhadores e pronunciamentos gravados que entram em off sobre os diálogos (incluindo aí a voz do próprio Godard).
Para contextualizar este filme, é importante mencionar a ousada empreitada dos États Généraux du Cinéma, que interditaram o Festival de Cannes e institucionalizaram no mesmo ano os Ciné-tracts. Esses filmetes, cuja paternidade Godard atribui a Chris Marker, constituem “panfletos fílmicos” que agenciam imagens de maio de 1968, como aquelas absorvidas também na própria fatura de Un film comme les autres. São elas que (inter)rompem aqui a conversa entre estudantes e operários para opor o preto e branco e a cor, o presente e o passado recente, o ato de falar e a necessidade de mostrar.
Assim como não há autoria no filme, os planos dos cinco jovens que discutem os desdobramentos de maio permitem ver apenas fragmentos de seus corpos numa relação que exclui quase por completo o rosto. O anonimato dos que falam (alguns eram procurados pela polícia) parece ecoar a reflexão de Edgar Morin à época, para quem as jornadas de maio teriam sido une révolution sans visage. Mas não é só isso. O rosto é um privilegiado topos de narrativas e pedagogias. Na cara ou no rosto, existem acoplamentos ativados para produzir sentidos, correspondências, afetos. Deleuze e Guattari diziam em Mil platôs que “o rosto é um mapa”, relacionando-o com o conceito de afeto. Aqui, a ausência de rosto sugere que não existe qualquer intenção de construir afetos entre material filmado e espectador, apenas engajamento, experiência social e utilitária.
E o que resta, o que sobra na paisagem, quando só há cabeças falantes, vozes sem boca, puro discurso? Resta a língua que se desenrola, a linguagem que desliza, tentando apagar com dificuldade os contornos de um rosto que poderiam ser facilmente indexados àquele que fala. Restam palavras, vozes narrativas, discursos, pura ficção. Se ficcionalizar é um ato de deslizamento contínuo, não idêntico nem ao autor-narrador, nem ao mundo cotidiano, ficcionalizar neste filme é praticar a ideia maoísta segundo a qual “um bom camarada vai aos lugares onde as contradições são mais agudas”. E o cinema de Godard vai lá, descrevendo e fazendo circular ideias, vozes e corpos transformados em instâncias discursivas.
O filme foi feito em 16 mm, bitola amadora, restrita a cineclubes, à margem do circuito comercial. Como boa parte da filmografia do Grupo Dziga Vertov, sua finalidade era também a exibição na televisão, meio mais abrangente dada a extensão doméstica e o potencial pedagógico. Tal difusão, como se dará nos filmes seguintes, não chegou aos lares franceses. Nas projeções escassas e irregulares, sempre nos circuitos alternativos (universitários, cineclubistas), Godard promoveu mais uma operação de distanciamento do ritual convencional cinematográfico: decidir a ordem de projeção dos rolos (o filme é composto de dois rolos de quase cinquenta minutos) na hora da projeção, na sorte de um cara ou coroa a ser definido pelo projecionista.
O Godard que se mistura ao Grupo Dziga Vertov é o mesmo que parece querer tudo, sempre. Quer a coisa e o seu contrário ao mesmo tempo. Fazer cinema pelos seus extremos – cineasta prestigiado e operário anônimo do cinema –, sem negar suas irredutibilidades e servindo-se ao contrário de suas distâncias. Jean-Pierre Gorin, seu maior parceiro no Dziga Vertov, estabeleceria à época uma das prioridades do grupo: “O primeiro conceito a destruir é o conceito de autor”.
Andrea França e Leonardo Esteves
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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