França, 1972, cor & p/b, 16 mm, 52’
Realizado para acompanhar as projeções de Tout va bien (1972) em festivais em 1972, esta última colaboração entre Godard e Jean-Pierre Gorin parte de uma fotografia de Jane Fonda publicada em um semanário francês para trabalhar uma modalidade de ensaísmo que seria reinventada em várias ocasiões na carreira posterior de Godard.
“Dear Jane.” As duas palavras iniciais da banda sonora pareceriam irônicas, posto que o filme iniciado com elas é uma densa análise política de uma fotografia da star hollywoodiana publicada no semanário L’Express em agosto de 1972, compondo no conjunto uma crítica feroz à postura da atriz em relação à luta do povo vietnamita. No entanto, o que a aparente docilidade irônica do vocativo epistolar encarna é um gesto de profunda generosidade. Godard e Gorin, numa derradeira colaboração que encerra o período do Grupo Dziga Vertov, se dirigem a Jane Fonda (que colaborara com eles, no mesmo ano, em Tout va bien) como um militante a um companheiro de luta: com a consciência de quem sabe que pode ensinar algo e não se furta à tarefa por receio do didatismo e com a franqueza implacável e benfazeja de um camarada que não recusa a crítica como território de partilha.
Mas o filme-carta excede em muito seu contexto de circulação inicial. O que vemos é um prodigioso trabalho de investigação iconográfica e ideológica que parte de uma única imagem para, ao mesmo tempo, desconstruí-la por dentro e expandi-la em uma miríade de direções insuspeitadas (ora perscrutando sua vinculação ao contexto histórico e comunicacional da indústria cultural, ora submetendo-a a um juízo político conjuntural, ora tecendo relações com uma imagerie milenar). Embora o texto e a montagem trabalhem num sentido próprio de linearidade e acumulação ao discurso professoral – e ainda que, visto hoje, seu ensaísmo possa parecer limitado diante das possibilidades abertas pela obra posterior de Godard –, o didatismo de Letter to Jane guarda um conjunto de potências bastante particulares.
O gesto é próximo daquele empreendido por Roland Barthes em Mitologias (1957): trata-se não apenas de compreender o que a imagem dá a ver, mas, sobretudo, o que ela esconde. “Uma foto pode encobrir tanto quanto descobrir. Ela impõe o silêncio ao mesmo tempo que fala.” A montagem isola cada elemento, seja por meio do texto que os comenta em pormenor, seja nas operações de reenquadramento que destacam porções da imagem. A posição dos corpos (a militante em primeiro plano e o Vietnã ao fundo), a boca fechada (contradizendo o texto de L’Express, que mencionava um diálogo), o enquadramento que destaca o ato de olhar da atriz (e não o que ela olha), o ângulo em contra-plongée que confere dignidade à estrela, o grau de nitidez dos rostos (a norte-americana famosa nítida, o vietnamita anônimo desfocado), tudo na fotografia adquire um sentido político preciso, porém dissimulado pela operação da ideologia. Embora o governo do Vietnã do Norte tenha convidado Jane e controlado a produção da imagem, sua circulação no “mundo livre” lhe escapa. O que essa imagem pode significar para nós é apenas uma demanda muito vaga por “paz no Vietnã” (a mesma de Nixon e de Brejnev), que confere todo o protagonismo ao gesto humanitário da vedete, mas não explicita de qual paz se trata nem coloca em questão a paz na América.
Mas se há isolamento, há também fricção com imagens provenientes de um repertório infinito. Ao olhar programaticamente trágico de Jane (o mesmo lançado por seu pai aos negros em Young Mr. Lincoln, a mesma “ternura eterna” da Pietà de Michelangelo), o filme contrapõe as expressões singulares de figuras do cinema mudo, como Lilian Gish, Maria Falconetti e Rodolfo Valentino. Numa extraordinária apropriação da experiência de Kuleshov, Letter to Jane intercala esses rostos inesquecíveis a uma mesma imagem da catástrofe no Vietnã, como se nesse encontro mudo entre fantasmas pudesse surgir uma profunda iluminação sobre o presente da luta política.
Embora a montagem beire a teleologia, a multiplicação das desconstruções e a amplitude das relações iconográficas fazem com que na experiência do espectador não haja nenhum conforto (sentimento comum no ensaísmo vulgar). Letter to Jane nos obriga a olhar duas, três, centenas de vezes para a mesma imagem e a encontrar nesse percurso (com a ajuda do texto, mas por nossa própria conta) inúmeros feixes de relações. Se, à primeira vista, a experiência do filme parece acontecer muito no cérebro e pouco no corpo, a cada vez que a imagem reaparece nossos sentidos já não são mais os mesmos.
O ensaísmo godardiano – que já se esboçava desde A chinesa (1967) – seria reinventado muitas vezes depois e atingiria seu ápice em Histoire(s) du cinema (1988 – 1998) (retornando, sob formas sempre novas, tanto nos longas recentes como nos filmes-carta que Godard tem enviado aos festivais dos quais se recusa a participar), mas Letter to Jane é um episódio decisivo dessa pedagogia. Se “Godard e Gorin transformaram o cubo cenográfico em sala de aula”, como escreveu Serge Daney, o que se processa aqui é uma reeducação paciente e generosa do olhar que, a partir de uma única imagem, intervém materialmente sobre a programação cotidiana do nosso aparelho perceptivo e produz um verdadeiro desvio na história do olho.
Victor Guimarães
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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