França, 1975, cor, 35mm & vídeo, 88’
Co-realizado com Anne-Marie Miéville, Numéro deux examina os conflitos em torno da vida doméstica, do sexo e do trabalho de uma família francesa que vive num claustrofóbico apartamento moderno. O filme se organiza por justaposições de dualidades, entre as quais som e imagem, cinema e vídeo.
Anos antes de Salve-se quem puder (a vida) (1979), Godard já apresentava Numéro deux como um recomeço após sua “fase maoísta” junto a Jean-Pierre Gorin e ao grupo Dziga Vertov. Se Ici et ailleurs (1974) era um acerto de contas com o dogmatismo militante, um filme de crise sobre o fim de um projeto, Numéro deux era a tentativa de criar uma nova base para um “cinema possível”, como lemos na passagem entre duas de suas cartelas iniciais. Tratava-se não somente de evitar dividir o mundo em dois, entre isso ou aquilo; ou de evitar as certezas de quem fala pelo outro e ajusta o som alto demais, como dissera o próprio cineasta ao criticar seus filmes anteriores. Mas de testar livremente sua nova fábrica de montagem para aproximar, colidir, tornar simultâneo para os espectadores pares antes separados e que assim poderiam coexistir, produzindo múltiplos e inesperados significados. Esse experimento deveria se dar também a partir do choque entre dois termos simples, os elementos básicos do cinema: som e imagem. Ou melhor, no encontro, na fronteira, no momento de interferência entre dois sons e duas imagens.
Apesar de apresentar em pormenores a operação de sua linha de montagem, na qual é ao mesmo tempo patrão e operário, Godard volta-se para outras fábricas na paisagem ao seu redor: a família, a fábrica feminina (a “usina elétrica” Sandrine), a fábrica de reprodução social, o trabalho. O diretor não afirma mais as “vitórias das lutas que vão estourar pelo mundo”, como se ouve no início do filme, mas contrasta a política distante, isolada, impossível (“como a revolução em um país rico”) com o que estava mais próximo, o que era mais íntimo e rotineiro: a vida doméstica, o sexo. A dicotomia entre os personagens dos avós é exemplar desse contraste: de um lado a narrativa aventureira do fracasso de lutas passadas; de outro, o discurso feminista sobre a exploração e a violência cotidianas.
Esse e outros choques entre duplos se traduzem no próprio formato híbrido da obra, entre cinema e vídeo, na tensão entre polos de proximidade e distanciamento que cada suporte reforça. O uso do vídeo intensifica os característicos achatamento e frontalidade das imagens no cinema de Godard assim como o aproxima mais objetivamente do ambiente doméstico, da intimidade posta em cena. Já o ponto de vista do cinema, da sala de montagem de onde vemos os monitores de vídeo, nos distanciam destas imagens; nos põe a trabalhar para encontrar sentidos em meio à banalidade, relacionando os pares, as vozes, ainda não sintetizadas pela edição. Como diz Sandrine em off, Numéro deux é um filme para o qual se pode olhar tranquilamente, escutar com calma, para que vejamos cada imagem duas vezes, eventualmente de frente e de trás. Nesse sentido, se acrescenta ao jogo de interferências a experimentação com a mixagem eletrônica, o desconcertante uso de incrustações, janelas e fusões que figuram os choques e a solidão dos personagens na casa. Não há razão para o campo / contracampo, forma consagrada do diálogo no cinema.
Os enquadramentos sugerem também a clausura, e as raras tomadas externas parecem provir da janela da própria casa. Apenas o som, da paisagem ou da música, ameaça esse cenário de isolamento. O “incrível que não se vê”, mas que pode ser ouvido, anuncia uma superação distante, pelo reconhecimento na História. A imagem para os personagens, potencializada em sua repetição banal na TV, apenas os separaria e os isolaria em um presente sem memória.
O sexo se configura no filme também na ausência de comunicação, como lugar onde se torna mais evidente o desencontro entre o casal. Seus sexos não podem mais falar, como ensinam aos filhos. Ou seguindo outra metáfora do filme, suas fábricas não funcionam mais, o desequilíbrio entre cargas e descargas chegou a um limite. Acompanhamos assim a tomada de consciência de Sandrine em relação às razões desse desequilíbrio, que não podia ver: há algo por trás, um sistema social que organiza a sua produção, a expropria continuamente e a faz ver seu trabalho e a si mesma como número dois: “me transformo ao mesmo tempo na que caga e na merda”.
Mas há também mais alguém por trás, outro patrão que organiza seus movimentos, seus gestos, suas palavras, sua imagem. O autor que insiste em falar por ela, em trabalhar em seu lugar, em ainda relegá-la ao papel de número dois. No epílogo, Sandrine se insurge contra esse “crime”, como personagem e como atriz; sua voz poderia ser também da coautora invisível que finalmente se faz ouvir. Ela anuncia a necessidade de outro cinema possível, tido como irrealizável, que se organizaria numa distinta relação de trabalho. Um cinema em que a imagem da fábrica possa se apagar para se melhor ouvir o som da paisagem.
Theo Duarte
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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