França, 1979,cor, 35mm, 87’
Denise Rimbaud resolve abandonar a cidade e o namorado, Paul Godard, em busca de uma nova vida no campo. Paul, um técnico frustrado que trabalha na TV local, não quer se separar dela, mas resiste em sair da cidade. Isabelle é uma prostituta que dorme com Paul e quer alugar o apartamento de Denise.
A certa altura de Salve-se quem puder (a vida), depois de percorrer de bicicleta as paisagens rurais da Suíça, Denise Rimbaud (Nathalie Baye) senta-se numa janela com um bloco de notas. Sobrepostas às imagens da gráfica de um jornal que acaba de contratá-la, suas palavras falam dos gestos gratuitos, dos relaxamentos involuntários do corpo do trabalhador na linha de montagem: “Essa hesitação da mão. Essas caretas. Esses desligamentos. É a luta da vida para perdurar”. Há aí uma bela metáfora para entender o retorno de Godard à ficção narrativa (seu “segundo primeiro filme”, como ele diz) quase dez anos depois da imersão na militância política e do início do trabalho com o vídeo. Isso porque Salve-se quem puder – como um de seus filmes-irmãos, Viver a vida (1962) – é também uma crônica sobre a beleza, o trabalho e a prostituição no mundo contemporâneo.
A mudança de Denise para o campo personifica justamente essa busca pela inocência, pelos prazeres de uma vida simples, em oposição à lógica mecânica e produtiva da cidade: "Eu quero parar de definir as coisas, quero apenas viver", diz ela. Mas é em seu próprio rosto que Godard parece encontrar, mais de uma vez ao longo do filme, essa reserva de energia bruta e primitiva dos gestos sem finalidade. Através da desaceleração da imagem, ele intensifica a beleza de suas expressões, e mais a frente no filme, de uma série de ações de seus personagens. Aplicando à riqueza visual do 35mm o princípio de decomposição do vídeo, Godard consegue conjugar de modo sublime a experiência desses dois momentos da sua trajetória.
Já o namorado de Denise, Paul Godard (Jacques Dutronc) – cujo sobrenome revela a intenção autobiográfica do filme – defende o trabalho como o único lugar onde uma relação de amor entre duas pessoas pode ainda surgir. Por meio desse conflito, o cineasta explicita de saída o seu próprio lugar no cinema, marcado naquele momento tanto pelo isolamento da indústria, no interior da Suíça, quanto pela parceria afetiva/profissional com Anne-Marie Miéville.
Surpreende, nesse sentido, a franqueza com que Godard se dispõe a falar de si mesmo através do personagem de Paul, algo notável num diretor acostumado a (se) pensar sempre por meio de contradições e paradoxos. O cineasta, na verdade, faz um retrato amargo de si mesmo, no limite da perversão e da sordidez: "Você já pensou em acariciar sua filha, em fazer sexo com ela?" – pergunta Paul ao professor de ginástica de sua filha Cécile.
É possível ver nesse impulso confessional de Godard, nessa vontade de não eximir-se da "sujeira do mundo", um desdobramento tardio da famosa polêmica em torno de Noite Americana (1973), de Truffaut. Numa carta controversa que precipitaria o rompimento entre os dois, Godard acusava Truffaut de não ter representado de maneira honesta a violência e a sordidez implícitas no mundo do cinema. Todo trabalho, diria ele, implica algum tipo de coerção, seja ela financeira, política ou sexual. Ninguém pode simplesmente lavar as mãos, fingir que nada disso existe.
Realizado sete anos depois dessa polêmica, Salve-se quem puder parte desse mesmo princípio. Se ainda for possível, no mundo atual, falar com honestidade do cinema, então é preciso começar por aí: mostrar que as relações de trabalho, sexo e amor reproduzem a lógica de exploração da economia e do capital (daí talvez o “salve-se quem puder” do título, que acena com ironia a esse processo quase inevitável de alienação da vida íntima e social).
A personagem que melhor exemplifica essa ideia, porém, é Isabelle (Isabelle Huppert), a prostituta com quem Paul começa a sair e que pretende alugar o apartamento de Denise. Godard nomeia essa terceira parte do filme “O Comércio” – as outras duas, relativas a Denise e Paul, se intitulam respectivamente “O Imaginário” e “O Medo”. Numa das cenas mais marcantes do filme, Isabelle atende, com sua habitual indiferença, aos favores sexuais de um empresário rico, participando de uma orgia cuja lógica espelha a disposição dos trabalhadores numa linha de montagem. No meio desse circo cômico e grotesco, a câmera se detém por alguns segundos na imagem inocente do seu rosto, parcialmente coberto pelas flores de um buquê. Nesses e noutros instantes de extremo lirismo (a briga entre Paul e Denise na cozinha, as sucessivas desacelarações, a música executada no fim pela orquestra) Godard parece afirmar que nenhuma imagem da beleza poderá nascer, nesse novo mundo, completamente livre da dificuldade, da violência ou da estupidez (constatação que permanece ainda hoje no centro do seu cinema).
Salve-se quem puder é um filme sobre escolhas, mas também sobre a dificuldade de ser livre por meio delas (“Ninguém no mundo é independente. Apenas os bancos são independentes. Mas os bancos são assassinos”). É, ao mesmo tempo, um filme sobre o isolamento e sobre a necessidade do outro, num mundo tomado pela lógica absurda do capitalismo. À sua maneira contemplativa e quase naturalista, a fotografia de W. Lubtchansky e R. Berta constrói o retrato melancólico desse novo mundo. O espectador pode sentir assim a emoção contraditória desse pessimismo, dessa falta de perspectiva em torno das coisas, que reina à espera de que algo novo comece, ou de que um resto de beleza apareça.
João Dumans
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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