França, 1982, cor, 35mm, 87’
Enquanto seu país vive uma crise política, um cineasta polonês tenta rodar na França um filme no qual imita quadros de grandes pintores como Goya e Rembrandt. A filmagem não avança, os produtores pressionam. O diretor se envolve com uma jovem operária que acaba de ser demitida.
O primeiro plano de Passion expõe em gesto, em traçado fílmico, a démarche pictórica que Godard, esgotado o período de experimentação com o vídeo, elege como via de retorno ao cinema. De maneira hesitante, a câmera percorre um céu de fim de tarde e, ao perseguir o rastro de fumaça deixado por um avião a jato, evoca a aventura do pincel explorando a superfície de uma tela ainda à espera da forma. O movimento do aparelho é equiparado, assim, a um gesto pictórico inaugural, à inscrição de uma primeira linha num quadro. O campo delimitado pela câmera se recompõe constantemente, não se fixa. Godard busca o quadro. Geralmente, essa busca se faz antes de se ligar a câmera. Aqui, ela é feita no decorrer do plano, e o espectador é nela engajado, vindo a participar do pensamento e do trabalho que dão origem ao quadro. No momento em que a câmera finalmente encontra uma composição equilibrada, conseguindo impor limites ao que é ilimitado (o céu, o infinito do universo), nesse momento mágico e fulgurante, a música de fundo atinge um clímax, um ápice de intensidade, que transforma o enquadramento em epifania criativa. O quadro desponta como uma vitória da criação sobre a massa indeterminada que remete ao caos das origens, como se, pelo esforço de elaboração de um plano, Godard descobrisse a própria força de criação do cosmos, entendesse as leis que governam em silêncio o universo ou entrasse em sintonia com o movimento que mantém o mundo em infinito estado de criatividade e reinvenção.
O lado pintor de Godard já vinha se expressando desde os primeiros filmes, fosse num trabalho particular com as cores (Pierrot le fou, )1965), numa sucessão de enquadramentos que isolam os gestos e se assemelham aos estudos preliminares dos pintores (Une femme mariée, 1964), num filme inteiro dedicado ao retrato de um rosto (Viver a vida, 1962), numa pesquisa sobre a figuração do corpo em movimento pela manipulação da matéria-vídeo (France/tour/detour/deux/enfants, 1977-78), etc. Em Passion, a relação com a pintura fica mais explícita, e se torna o próprio mote da ficção. Jerzy, o cineasta polonês que tenta recriar em estúdio pinturas célebres de Rembrandt, Goya, Delacroix, Ingres e El Greco, recorre à técnica do tableau vivant, que consiste em reproduzir com modelos vivos uma composição pictural. A câmera passeia por dentro dos quadros vivos, isola uma parte do todo, desconstrói o sistema de iluminação de A ronda noturna (Rembrandt, 1642), coloca uma lupa sobre a violência de O 3 de maio de 1808 em Madri (Goya, 1814), acompanha com um movimento de grua o posicionamento de uma figurante no cenário de A entrada dos cruzados em Constantinopla (Delacroix, 1841). E não é só nas cenas rodadas no estúdio que o filme reencontra imagens já vistas na pintura: na fábrica em que Isabelle (Huppert) trabalha no início, seus gestos concentrados aludem aos de A rendeira (Vermeer, 1669-70); num passeio pelo bosque, Hanna (Schygulla) se depara com um fragmento de uma fête galante de Watteau, com direito à aparição de uma caravela no meio da floresta. O principal objetivo desse tour de force é chamar a atenção para o próprio processo da criação artística, para o dispêndio (de energia, de dinheiro) que ele implica, para o trabalho e a luta aí envolvidos. Pois é de luta – de ideias, de interesses, de classes – que realmente se trata, como no momento em que Jerzy e um dos modelos vivos começam a brigar, reproduzindo “acidentalmente” A luta de Jacó com o Anjo (Delacroix, 1861).
A ficção de Passion é frágil, vai se despedaçando minuto a minuto. Daí resulta um filme que se apresenta, no fim das contas, como um campo de atração para o fora de campo, um ponto de convergência para linhas de força vindas de fora. Um filme aberto ao mundo e à passagem do “ar do tempo”. Um sismógrafo do estado do mundo no começo dos anos 1980, sobretudo no que diz respeito à desmobilização da força política dos trabalhadores, à dessolidarização da classe operária, que o filme ironicamente coloca em paralelo com a formação do movimento Solidariedade na Polônia. Esse filme que não conta história alguma acaba sendo, desse modo, um radar da História.
Como O desprezo, de 1963, com o qual guarda semelhanças evidentes, Passion emana uma grandiosidade, uma vibração emitida pelo passado da arte ocidental. Lá, esse vulto do passado chegava através da Odisseia de Homero e da referência à Grécia antiga; aqui, ele é representado pelas grandes proezas da pintura europeia entre o Renascimento e o Romantismo: inspirado pelas conquistas formais de Rembrandt, Ingres etc., Godard se debruça sobre o acontecimento da luz no cinema, sua produção e sua forma de representação, que são, em grande parte, tributárias da pintura.
Passion apresenta também o que se tornaria o modelo de composição do som dos filmes posteriores de Godard. Excertos de Mozart, Ravel e Dvorák se misturam a diálogos, ruídos, frases gaguejadas, citações literárias e filosóficas. A banda sonora constitui uma grande massa sinfônica que Godard esculpe com um trabalho de montagem tão cuidadoso quanto aquele dedicado às imagens. O “Godard pintor” dos anos 1980 preparava o terreno para o “Godard músico” dos anos 1990/2000.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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