Portal Brasileiro de Cinema / Godard APRESENTAÇÃO   ENSAIOS    FILMOGRAFIA COMENTADA    FILMOGRAFIA    FICHA TÉCNICA    PROGRAMAÇÃO    CONTATO

APRESENTAÇÃO


ENSAIOS


FILMOGRAFIA COMENTADA

Anos 1950

Anos 1960

Anos 1970

Anos 1980

Anos 1990

Anos 2000

Anos 2010


FILMOGRAFIA


SOBRE OS AUTORES


FICHA TÉCNICA


PROGRAMAÇÃO


COBERTURA DA IMPRENSA


CONTATO


King Lear (Rei Lear)

Estados Unidos/Bahamas, 1987, cor, 35mm, 90’



Resultado de um contrato assinado em guardanapo, King Lear foi marcado por vários conflitos entre diretor e produtor. Tais conflitos se refletem nos procedimentos fílmicos de afirmação da própria negatividade, fazendo ecoar o silêncio de Cordélia e problematizando as relações entre artista e indústria, virtude e poder.

Na abertura de King Lear ouvimos, em off, uma conversa telefônica na qual Menahem Golan, um dos chefões da Canon Group Bahamas, pressiona Godard para finalizar rapidamente o seu trabalho. O contrato inicial, assinado num guardanapo durante o Festival de Cannes de 1985, previa um orçamento de um milhão de dólares para produzir “o Rei Lear como o Rei Leone, uma espécie de patriarca-mafioso... do gênero poderoso chefão”, a ser lançado na edição seguinte do festival. Mais de um ano e diversos imprevistos depois – cujos pontos fulcrais são a morte de Orson Welles, guia shakesperiano desejado por Godard, a realização de dois outros filmes e o desacordo com Norman Mailer, roteirista “imposto” por Golan –, o cineasta mal tinha começado as filmagens, motivo pelo qual sofria um verdadeiro assédio por parte da Canon.

Enquanto escutamos o diálogo, vemos letreiros que servem de subtítulos ao filme: “medo e delírio”, “um estudo”, “uma abordagem”, “um esclarecimento” e, finalmente, “no thing”, um eco da resposta de Cordélia ao soberano. Como ela, o filme se faz pela afirmação da própria negatividade ou silêncio, algo que se reflete, por exemplo, no personagem interpretado por Godard, cuja encenação é marcada por certa gagueira ou afasia criativa, mas também nos planos contemplativos (o cavalo que corre na praia, as flores em recomposição) e nas cartelas de intertítulos, cujas digressões ou jogos visuais deslocam continuamente o fluxo imagético. (Além disso, a sinopse do material de divulgação é simplesmente “no synopsis”). A obra consiste, assim, na tentativa do cineasta de reunir as peças do seu projeto “sitiado” e, embora pouco aprofundada, a referência à máfia sugere um soberano “chantagista” que vem cobrar – assim como Golan faz com Godard – o seu imperioso tributo.

Com efeito, desdobra-se um conflito entre as figuras do artista e da indústria, oposição continuamente refletida no binômio “virtude e poder”, enunciado nos letreiros, espécie de chave estrutural da releitura godardiana feita ao texto de Shakespeare e conectada, ademais, aos pares silêncio e palavra, Cordélia e Lear, mostrar e contar. A virtude da mulher, seu silêncio frente ao rei, corresponderia ao valor estético do filme na resposta corajosa – isto é, a própria obra – frente à intimação do produtor, instância do poder.

Sem dúvida, esse é um dos sentidos que emergem de outro letreiro (bastante ambíguo) utilizado por Godard, “A PICTURE SHOT IN THE BACK”: filme-traição, ou filme-sabotagem, em atitude semelhante à que o cineasta adotaria prolificamente no decorrer da carreira e, de modo mais frontal em relação ao “contratante”, num filme como De l'origine du XXIe siècle (2000), comissionado pelo Festival de Cannes. King Lear, um filme que não é (ou seja, “NO THING”), e que por isso resiste a ocupar o lugar de mero objeto normatizado ou commodity, agindo, antes, para subverter as vias oficiais (do poder) que agiriam para enquadrar e controlar as imagens do artista (a quem caberia, portanto, dar provas de virtude).

Para tanto, além das referências críticas ao contexto de produção, Godard opera contínuos deslocamentos no legado artístico, desde a adaptação “perversa” do texto de Shakespeare até a apropriação de figuras famosas, como pinturas e rostos de cineastas, estes acompanhados por dois tipos de comentários em off: interjeições de aceitação ou recusa e trechos do texto L’image, de Pierre Reverdy. A montagem é tomada como um potente dispositivo reflexivo que permite, entre outros, decompor e reconfigurar a tradição, por exemplo, pela relação subjetiva com os diretores mostrados. Franju, a quem Godard dedicou pouca atenção nos anos de Cahiers, é “reavaliado” pelos dizeres “Georges, sim, definitivamente”. Sacha Guitry, “ainda editando em seu leito de morte”, funciona como um (auto)retrato do artista nos momentos de perigo. Nesse gesto ensaístico-historiográfico – claramente vinculado às Histoire(s) du cinémacinema (1988-1998), cujo primeiro capítulo seria finalizado no ano seguinte – encontram-se as bases para a reinvenção da arte e do cinema frente às forças do poder ou da catástrofe (isto é, “depois de Chernobyl”).

Essa reinvenção parte de uma possibilidade redentora da imagem, espécie de promessa anunciada pela frase paulina de que “a imagem virá no tempo da ressurreição”. Por meio de composições marcadas pela forte valorização da visualidade – como nos planos do cavalo branco na praia, das velas faiscantes na sala escura ou das flores em recomposição – o filme problematiza o logocentrismo predominante na cultura (e na tradição) ocidental, apostando na autonomia misteriosa da imagem e na renovação do olhar. Não por acaso, as aparições do Professor Pluggy, personagem interpretado por Godard, servem via de regra para marcar a primazia do visual sobre a linguagem verbal (“mostre, não conte”). Pelas costas do soberano enlouquecido ou do produtor enfurecido, o reino perdido retornaria como um espaço artístico capaz de fundar novas formas de ver e de pensar.

Luís Felipe Flores



Produção

Apoio

Correalização

Copatrocínio

Realização


Sugestão de Hotel em São Paulo, VEJA AQUI. Agradecimentos ao Ibis Hotels.


É expressamente proibida a utilização comercial ou não das imagens aqui disponibilizadas sem a autorização dos detentores de direito de imagem, sob as penalidades da lei. Essas imagens são provenientes do livro-catálogo "Godard inteiro ou o mundo em pedaços" e tem como detentoras s seguintes produtoras/ distribuidoras/ instituições: La Cinémathèque Francaise, Films de la Pléiade, Gaumont, Imovision, Latinstock, Marithé + Francois Girbaud, Magnum, Peripheria, Scala e Tamasa. A organização da mostra lamenta profundamente se, apesar de nossos esforços, porventura houver omissões à listagem anterior.
Comprometemo-nos a repara tais incidentes.

© 2015 HECO PRODUÇÕES
Todos os direitos reservados.

pratza