França, 1987, cor, 35mm, 81’
Um cineasta recebe a ordem de rodar e deixar um filme pronto em um dia, o que o obriga a sair do autoexílio; a dupla de música pop Les Rita Mitsouko ensaia e grava as canções de seu próximo álbum; um homem chamado Indivíduo vaga em uma série aleatória de encontros e situações absurdas.
Direita e esquerda. Comédia funesta. Sobreposições no lugar de oposições, disparates em vez de dialética. Estas tentativas de fórmulas são tantos esforços de circunscrever as possibilidades de significações sugeridas pela visão de Soigne ta droite, todas, obviamente, simplificações excessivas dos significados projetados pelo filme.
Por isso, identificar parte das especulações que percorrem o filme, assim como esboçar algumas articulações dele com o corpo da obra podem ser mais úteis do que qualquer esforço de inserir mais uma interpretação num campo sempre saturado.
Philippe Dubois aponta Soigne ta droite e King Lear (feitos no mesmo ano) como o início do “último estado, filosófico-literário”, do cinema de Godard. Se acatarmos essa periodização, pode-se identificar em Soigne ta droite uma radicalização da forma-ensaio onipresente desde os filmes dos anos 1960, mas reconfigurada daqui em diante por meio de personagens cada vez menos sujeitos às convenções da dramaturgia.
No lugar da diegese, predomina algo como um pensamento em voz alta por meio dos personagens, porta-vozes de citações e digressões e aqui nomeados de maneira bastante genérica, como o Indivíduo, o Idiota, o Homem, a Americana, o Almirante etc.
O título evoca-parodia o do curta Soigne ton gauche, dirigido por René Clément em 1936, no qual Jacques Tati esboça os desarranjos futuros de Monsieur Hulot ao interpretar um fazendeiro que se intromete num treino de boxe.
A expressão soigne ta droite também ironiza o retorno da direita ao poder na França, após a vitória da coalizão de partidos conservadores nas eleições legislativas em março de 1986, que impôs à presidência do socialista François Mitterrand a necessidade de “coabitação” com o governo do primeiro-ministro conservador Jacques Chirac.
Essa provocação desorientadora reaparece no subtítulo, Une place sur la terre, ao qual o filme contrasta imagens aéreas e situações passadas em pleno céu, alegoria do tema da morte que perpassa o filme e cujo medo-encantamento é reiterado no plano da porta aberta, figuração do au-delà que obseda Godard de modo mais explícito desde Sauve qui peut.
Após o breve prólogo intercalado aos créditos, a primeira sequência numa oficina mecânica lembra visualmente um fragmento de Made in USA ou A chinesa, com amarelos e vermelhos misturados a logotipos da Shell e da Pirelli espalhados no cenário. Em meio à saturação cromática, contrasta a figura do próprio Godard num figurino cinza e ensimesmado na leitura de O idiota, alcunha dada ao personagem do cineasta também chamado de Príncipe, como o protagonista do romance de Dostoiévski.
A intromissão física e/ou vocal de Godard em seus próprios filmes não chega a ser novidade. Contudo, sua inserção como personagem, misto de clown e tipos burlescos, já surgira em Vladimir e Rosa, mas ganha corpo de Prénom Carmen a King Lear. Além da evidente inspiração em Tati, seu personagem carrega referências físicas a Jerry Lewis e Buster Keaton e ostenta a máscara melancólica de Stan Laurel e de Harry Langdon.
Em paralelo a esses esquemas que mal se poderia chamar de trama, Godard insere regularmente fragmentos do trabalho do duo pop Les Rita Mitsouko durante a produção do álbum The no comprendo. Se a estratégia sugere similitudes com o registro de estúdio dos Rolling Stones em One plus one, a necessidade da exposição aqui é outra. Enquanto lá Godard se detinha sobre o princípio da repetição, presente na estrutura da canção e na rotina dos ensaios, o registro do trabalho do casal Fred Chichin e Catherine Ringer expõe o processo de composição, mixagem e produção que envolve o mesmo tipo de hesitação, de multiplicação, de campo aberto de possibilidades, de digressões, em resumo, de livre experimentação que Godard busca ao aprofundar seu projeto de cinema-ensaio.
Diante desse quase-documentário sobre o ato de criação, o Idiota-Cineasta-Príncipe escuta, enfim, um eco para sua solidão, misturado aos esboços de acordes do compositor e da cantora, no balbucio: “Era uma espera sem sentido..., tão sem sentido quanto a radiação..., no entanto foi... direcionada a quem esperava... o sonhador. Era como um convite para ele! Um último esforço criativo para sair do sonho, do destino, da sorte, da forma, de si mesmo”.
Cássio Starling Carlos
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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