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Nouvelle Vague

França, 1990, cor, 35mm, 89’



Uma condessa atropela um andarilho, o leva à sua mansão e cuida dele. Mas se irrita com seu mutismo e deixa que se afogue. Um tempo depois, um homem idêntico surge, sabe do crime e se diz irmão do morto. Em troca do silêncio, passa a dirigir uma empresa da condessa e se torna seu amante.

Ao terminar o seu trabalho em Finnegans wake, Joyce declarou: “Levei quase duas décadas para realizar este texto. Agora espero que os leitores levem 300 anos para decifrá-lo”.

Aos 60 anos, Jean Luc Godard (talvez o melhor tradutor da estratégia criativa de James Joyce no cinema) faz um retorno às origens de sua geração e nos dá Nouvelle Vague.

É o tempo de ouvir os quartetos da maturidade de Beethoven, Arnold Schönberg (visitado por alguns trabalhos de Jean-Marie Straub e Danielle Huillet), Bela Bartok, Arthur Honegger e Paul Hindemith. E Hindemith vira trilha sonora de Nouvelle Vague. Na calma de sua Suíça de origem, onde busca uma continuidade de sua trajetória de reflexão (etnográfica?) sobre a cultura de seu tempo.

Jacques Audiberti empresta a Godard o pretexto (e o texto) para o mergulho em uma obra de referência. Escritor pouco conhecido, ele foi contemporâneo da gênese da Nouvelle Vague revisitada por Godard, chegou a colaborar nos Cahiers du cinéma como crítico e resenhista (a convite de François Truffaut) e chegou também a conviver com Cocteau e Valéry. O primeiro levou a geração dos Cahiers para o festival de cinema maldito de Biarritz. O outro frequentou a casa dos pais e o avô de Jean-Luc, na Suíça.

Vamos interpretar Nouvelle Vague? Isso é papel dos acadêmicos que poderão criar um corpus investigativo que chegará à conclusão habitual diante de qualquer obra de Godard (ou Hans Lucas): tudo é citação, coligida pela aleatoriedade poética de um investigador incansável do seu tempo. Atento, provocador, curioso, sofisticado, moleque (como Joyce), socrático, etc.

Mas Elena Torlato Favrini (personagem central do filme de Godard, representada pela linda Domiziana Giordano) “não existe”. Explico melhor: seu pai, o conde Torlato Favrini, de A condessa descalça, de Joseph L. Mankiewicz (uma obra-prima), representado pelo ator Rossano Brazzi, era estéril/mutilado de guerra e não criou descendência: flagrando sua amada Maria Vargas (Ava Gardner) nos braços do chofer do castelo, carente de cuidados sexuais e afetivos, ele os matou. Mas a condessa conta para um interlocutor, no filme de Godard, que seu pai (o conde) era amigo do embaixador americano em Roma, Joseph Mankiewicz (!). E ouve dele a seguinte resposta: “M. Mankiewicz não fazia cinema como os outros. Só fazia o seu trabalho”.

Dona de um império econômico/industrial na nova Europa (dos anos 1990), Elena está cercada de serviçais (a fábula da luta de classes; uma governanta responde para a subordinada, quando perguntada, “por que os ricos são diferentes?”: “Porque eles têm dinheiro”), negócios (compra de 3% do capital da Warner), advogados e executivos, automóveis (Maserati, Mercedes, BMW e um antigo e clássico Citroën – paixão constante de Godard) e tramas inconfessáveis (uma transação com um quadro de Goya, La maja desnuda e seus seios separados).

Um andarilho (Alain Delon) é achado quase morto à beira de uma estrada e um balé de mãos o ressuscita. Mais tarde, é deixado morrer afogado pela condessa Torlato Favrini – “Je fais pitié”, repete ele. Depois “volta”, na forma de um irmão “igual”, mas completamente oposto: é um executivo dominador, dinâmico e agressivo, como bom yuppie. E se torna amante da condessa. Depois ela também se afoga (um corte rápido revela que ele não a deixa morrer). O cinema abole o raccord dramatúrgico (a continuidade lógica da narração). A Nouvelle Vague tinha abolido o raccord de movimento e transição (e instaurado o faux raccord).

E passeiam, diante de uma objetiva administrada por William Lubtchansky (colaborador da Nouvelle Vague “madura”: Rivette, Straub, Bonitzer, Varda, Garrel), por herdades verdes, águas e horizontes (como em Pierrot le fou, 1965? – “Ah, quelles térribles cinq heures du soir”).

Imagens conectadas apenas pela sensibilidade poética.

E ouvimos Dante, Erle Stanley Gardner, Schiller, Conan Doyle e sabe-se lá mais quem.

A água nos traz O sol por testemunha ou Um lugar ao sol.

Ao mesmo tempo, Godard dá mais uma guinada em seu processo criativo em direção ao profundo umbigo confessional (JLG/JLG, 1994, Passion, 1982 e Prénom Carmen, 1982, uma autoironia sobre a idade madura mostra um “titio” Godard tentando enfiar o dedo no c... de uma enfermeira, empunhando um álbum de Buster Keaton).

Um mistificador, um estelionatário, um ilusionista?

Apenas um poeta, dedicado ao amor e à invenção.

Geraldo Veloso



Produção

Apoio

Correalização

Copatrocínio

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