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Hélas pour moi (Infelizmente para mim)

França, 1992, cor, 35mm, 84’



A partir da enquete de um editor, descobrimos que numa cidadezinha suíça Deus encarnou em Simon, proprietário de uma oficina mecânica, a fim de seduzir sua mulher, Rachel, que abre mão da imortalidade para continuar a viver seu amor pelo marido mortal. Inspirado no mito de Anfitrião e Alcmena.

Já se disse que “um deus que cala e não se mostra (que não se “encarna”, digamos) é um deus que não existe”. Pois é disso que se trata – não exatamente de encarnação, mas de transmutação ou metamorfose e a consequente confusão identitária por ela provocada – quando deuses (Júpiter e Mercúrio) tomam a forma humana (de Anfitrião e Sósia) para fins escusos do amor na comédia de erros Anfitrião, escrita por Plauto, no século III a. C., e retomada várias vezes por autores tão diversos quanto Luís de Camões (Anfitriões, 1587), Jean de Rotrou (Os dois sósias, 1636), Molière (Anfitrião, 1668), Antônio José da Silva, o “Judeu” (Anfitrião ou Júpiter e Alcmena, 1736) e Heinrich von Kleist (Anfitrião, 1807).

Na versão de Jean Giraudoux (Anfitrião 38, 1929), os deuses, que tudo podem, chegam a bloquear seus super poderes a fim de experimentarem na própria pele os sentidos e deleites do amor mundano – não tomado à força, de maneira inconsciente, mas consentido e recebido de forma carnal. Assim, o sobre-humano Júpiter abre mão de sua visão de raio x, capaz de atravessar paredes e vestimentas, para vislumbrar a olhos nus e imperfeitos (porque mimetizando o olhar humano) a sombra de sua amada Alcmena pela janela de seu quarto.

Em linhas gerais, o que ocorre quase invariavelmente nas muitas versões da peça é que, aproveitando a ausência do recém-casado Anfitrião, Júpiter assume sua aparência para seduzir a bela Alcmena, que só tem olhos para o marido. Numa noite que parece durar uma eternidade – por intervenção da Noite ou de Apolo, dependendo da versão –, Júpiter a ama, enquanto Mercúrio, por ordem de seu pai-patrão, assume a forma do fiel escravo de Anfitrião, Sósia, guardando a entrada da casa da indesejada aproximação de seu verdadeiro dono. Ao retornar vitorioso da batalha a que se dedicara, Anfitrião se depara com uma esposa mais indiferente do que esperava – visto que ela havia estado com o “marido” (ou seu duplo) poucas horas antes. Em meio a dúvidas sobre a própria identidade e ao vaivém de personagens que por fim encaram seus duplos divinos, Alcmena acaba sendo perdoada pelo marido que se sente lisonjeado por seu amor e honrado pela predileção de Júpiter. Da noite do adultério involuntário, contudo, nascerá o semideus Hércules.

Longe do registro da comédia, é também no mito de Anfitrião que Godard se inspira – assim como nas reflexões de Leopardi sobre a natureza humana – para criar Infelizmente para mim. É antes a forma de um ensaio filosófico (de teologia poética?) que o diretor adota para sua curiosa “proposta de cinema”: um filme imperfeito, de narrativa altamente experimental e fragmentada, que acompanha a busca de Abraham Klimt (Bernard Verley), um editor disfarçado de investigador metafísico, pelas dez páginas que faltam ao seu pretenso livro. Sua enquete por uma cidadezinha suíça baseia-se em um misterioso evento supostamente ocorrido na tarde de 23 de julho de 1989, quando Deus (Harry Cleven), com o auxílio de seu assistente Max Mercure (Jean-Louis Loca), teria encarnado em (ou assumido a forma de) Simon Donnadieu (Gérard Depardieu) através de um simples passar de chapéu – numa das cenas mais intrigantes do filme, que lhe é narrada em flashback por uma jovem habitante do local, Aude Amiel (Aude Amiot).

Uma vez na pele do mortal proprietário de uma oficina mecânica, Deus lança-se à conquista da mulher de Simon, Rachel (Laurence Masliah), que o atrai por sua extrema fidelidade e percebe rapidamente não se tratar do marido, apesar da incrível semelhança entre os dois. Não conseguindo resistir a tal criatura (“nem criatura, nem criador”, como lembra um dos muitos intertítulos do filme), ela finalmente cede aos encantos e avanços do imortal – cujo pênis divino é representado na forma de faíscas incandescentes em um plano mergulhado na penumbra. Trata-se de mais um filme da fase dita “meteorológica” (segundo o crítico Alain Bergala), “quase cósmica” (segundo a diretora de fotografia do filme, Caroline Champetier) do cinema de Godard – assim como Nouvelle Vague (1990), Alemanha Nove Zero (1991) ou ainda JLG/ JLG (1994) –, no qual se percebe o prazer e o gozo de um olhar panteísta lançado sobre as forças da natureza – a luz, a relva, o vento, o lago, a chuva etc. – em contraponto à intensa carga melancólica que se imprime a cada plano.

Godard nos reserva aqui um de seus filmes mais complicados, e talvez mais mal resolvidos, em termos semânticos e narrativos, porém mais ambiciosos e bem-sucedidos em termos plásticos, no qual sua miopia é refletida nos belíssimos momentos desfocados – recurso que serve às vezes como transição a um passado mutante que é alterado de acordo com a memória daquele que o conta (“O passado nunca está morto. Ele nem mesmo passou”, afirma outro intertítulo) –, e a chegada do trem na estação, numa explícita citação do seminal filme dos irmãos Lumière, serve de mote para a chegada de Deus na Terra, em sutil analogia celestial à origem do cinema.

Cristian Borges



Produção

Apoio

Correalização

Copatrocínio

Realização


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