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Les enfants jouent à la Russie (As crianças brincam de Rússia)

França, 1993, cor, 35mm, 58’



Contratado para fazer um documentário sobre a Rússia pós-Guerra Fria, um cineasta francês prefere adaptar O idiota, de Dostoiévski. Partindo desse pretexto, Godard segue o formato das Histoire(s) du cinéma e faz um filme-ensaio fundindo imagem, texto, música e vozes (in, off, over) num fluxo videográfico de quase uma hora.

Durante o longo período em que foi desenvolvendo suas Histoire(s) du cinéma, de 1988 a 1998, Godard realizou alguns filmes que podem ser vistos como anexos desse monumental projeto. Não se trata de remontagens de sobras de material, mas de filmes feitos no mesmo espírito, no mesmo elã das Histoire(s), reempregando sua estética e sua metodologia de base. Um dos primeiros trabalhos que se encaixam nessa categoria é Les enfants jouent à la Russie, de 1993. Aqui, face ao novo momento histórico e político da Rússia após o fim da URSS e a abertura ao capitalismo global, Godard se debruça sobre o imaginário russo. Os fios condutores do seu itinerário ensaístico/ficcional são os grandes autores da literatura (Tolstói, Dostoiévski) e, é claro, do cinema soviético (Sergei Eisenstein, Boris Barnet, Lev Kulechov, Dziga Vertov).

Muitas das figuras de estilo empregadas em Histoire(s) retornam em Les enfants, a exemplo da câmera lenta que estira ao extremo as imagens de filmes antigos resgatadas por Godard. Há um momento em que ressurgem dois planos da obra-prima À beira do mar azul (1936), de Boris Barnet, que mostram as pedras transparentes se desprendendo do colar usado por Misha (Yelena Kuzmina) e caindo no chão como lágrimas que se cristalizaram. No filme original esses planos já aparecem em câmera lenta, mas, ao retomá-los, Godard acentua ainda mais o efeito, leva-o ao limite, até o ponto em que é a própria imagem que ameaça se romper tal como o colar de Misha. Outros trechos de filmes russos do passado despontam aqui e ali como lampejos de memória ou como reminiscências históricas, imagens sobreviventes, encontradas entre os escombros de um mundo defunto.

Não faltou quem percebesse, a propósito de Histoire(s), a plasticidade e a significação novas que as imagens de filmes clássicos adquiriam ao serem retomadas por Godard. Fora do encadeamento dramático original, liberadas de uma funcionalidade narrativa, ralentadas e texturizadas pela matéria precária do vídeo, essas imagens recuperavam algo de uma emoção plástica e de uma potência icônica somente vistas nos ícones pré-renascentistas, nas imagens anteriores à formação da linguagem visual moderna. A saturação cromática que algumas imagens ganham quando transpostas para o vídeo, em Histoire(s), se substitui ao fundo dourado dos ícones, assim como o aspecto desbotado, envelhecido (muitas das cópias usadas por Godard são regravações de regravações), reproduz o desgaste natural, a luta das imagens icônicas contra a passagem dos séculos. Ciente de que a ocasião é propícia, Godard aproveita para acentuar, em Les enfants, o paralelo entre a estética que desenvolveu a partir de Histoire(s) e o modelo de representação dos ícones cristãos, que tiveram na Rússia uma tradição duradoura, pois suas imagens sacras continuaram a respeitar a linguagem simbólica dos ícones mesmo numa época em que a pintura da Europa ocidental já mudara de paradigma e passara a aprimorar seus sistemas opticamente realistas de construção em perspectiva.

Numa cena, André S. Labarthe pergunta a Bernard Eisenschitz – ambos ex-críticos dos Cahiers du cinéma e habituados a participar dos filmes de Godard, Jacques Rivette, Luc Moullet, Jean Eustache e outros – por que ele escreveu certa vez que não há campo-contracampo no cinema soviético. Eisenschitz explica: “Na verdade, há somente ícones... há espaços com os personagens decupados mais ou menos de perto, mais ou menos de longe, a partir de uma única posição de câmera... mas não há troca de olhares”. O campo-contracampo, segundo o crítico, seria uma invenção do cinema americano, que percebeu, na década de 1910, que era mais vantajoso induzir as pessoas a enxergar superficialmente, ao invés de ver para valer. Os planos do cinema soviético, diferentemente, dispensariam a transitividade do sistema do raccord de olhar (em que os olhares são tomados como vetores da narração): seus rostos não serviriam para fazer um plano se comunicar com o outro, mas para comunicar o espectador com a presença icônica que vibra na tela.

“Como Hitler e Napoleão”, afirma o narrador de Les enfants, “todas as pessoas inteligentes têm tirado proveito dessa pobre Rússia ao invadi-la. Hoje isso está acontecendo de novo. Por que o Ocidente quer invadir esse país mais uma vez? É simples: porque ele é a terra natal da ficção, e o Ocidente não sabe mais o que inventar”. Essa frase, dita no início do filme e repetida logo depois, postula não apenas o esgotamento criativo do Ocidente, sua incapacidade de inventar ficções, mas também a busca pessoal de Godard por um imaginário que possa vir ao socorro de uma arte – o cinema – que entrou numa relação de hiper-transparêcia pornográfica com a realidade. Voltar a Tolstói para reaprender a contar; voltar aos ícones para reaprender a ver.

Luiz Carlos Oliveira Jr.



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Copatrocínio

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