França, 1994, cor, 35mm/vídeo, 62 min
Godard encena a própria solidão em sua casa, na Suíça, numa espécie de balanço de sua vida e obra. O cineasta revela fragmentos de seu mundo interior feito de sensações, afetos e reflexões, e termina escrevendo – sob a luz de um fósforo – desconcertantes palavras de amor.
JLG/JLG: autorretrato de dezembro. De dezembro, simples e pontual assim. Dezembro: o último mês do ano, mas também o que antecede o começo de um novo – e não se deve esquecer que no calendário cristão ele é o mês do nascimento. Menos ainda que, ao longo do filme, o calendário republicano, criado na Revolução Francesa, e já usado por Godard em outras situações para propor o começo de um novo tempo, substituirá o cristão na marcação dos capítulos.
“Autorretrato, não autobiografia”, o cineasta nos previne. Um autorretrato jamais é definitivo. Uma autobiografia sim. Ela fixa uma imagem, uma identidade, um autor, um “eu” que narra e um “mim” narrado. Godard vai mais longe: um signo gráfico separa as iniciais de seu nome, não uma preposição. Não se trata de JLG por, para ou de JLG. Não há nenhuma relação de autoridade entre um sujeito e um objeto a ele submetido, apenas uma sigla, uma legenda. É esse o desejo do filme: deixar de ser sujeito, individualidade, autor com A maiúsculo, impressão digital para virar universal: aquele que existe e sobrevive na obra, a partir da obra e como sua legenda.
“Se há um JLG por JLG, o que quer dizer ‘por JLG’?”, ele pergunta a certa altura. E então responde: “Trata-se de paisagens de infância vazias e paisagens mais recentes, filmadas. Há ‘país’ em paisagem, e duas noções de pátria podem se depreender disso: uma pátria dada e uma pátria conquistada.” E a essa referência, segue uma tela negra e então uma claquete: o cinema, a arte, como pátria criada, conquistada e habitada.
A paisagem e a ideia de pátria evocada por ela são centrais neste autorretrato. Particularmente a paisagem de Rolle, às margens do Lago Léman, que é a um só tempo a da infância e a do exílio. Mas não se trata da vista de Rolle tal qual ela é, cidade situada em um espaço-tempo preciso, e sim de um lugar suspenso, esvaziado do comércio com o mundo – as paisagens filmadas são vazias e desabitadas. Num dos momentos mais tocantes do filme, Godard vaga por uma península no Lago enquanto a banda sonora toca trechos de filmes de Ray, Rossellini e Barnet – é o cineasta habitado por filmes e habitando o mesmo espaço que eles. Ao declamar que a potência do espírito só existe quando se olha para o negativo de frente e apontar para a câmera, sua voz interpõe-se à de Eddie Constantine em Alemanha 90 (1991) a dizer: “ó pátria amada, onde está você?” As paisagens convertem-se, assim, em metáfora para uma segunda pátria, cujos conterrâneos, desencarnados, falam a língua franca da arte e à qual se ascende apenas pela criação do espírito.
Ao lado das paisagens de Rolle, o espaço doméstico da casa é o segundo mais importante do filme. Trata-se possivelmente de um dos filmes mais solitários do cineasta. Não somente porque o vemos só, mas porque ele parece, aqui, ter abandonado qualquer tipo de troca com o mundo dos vivos. O espectador razoavelmente familiarizado com a obra de Godard, já conhece, a essa altura, várias de suas personas e máscaras: o idiota, o desconstrutor de imagens e representações, o historiador profético; são personas assumidas em resposta e em diálogo com seu tempo histórico. Aqui, entretanto, trata-se de uma retirada, um recolhimento. Na verdade, JLG/JLG é um filme habitado quase exclusivamente por mortos: Aragon, Diderot, Ovídio, Rossellini, Ray, Vigo, Dostoiévski. Como já dissera Deleuze a propósito de outro filme de Godard, trata-se de uma “solidão povoada”. Povoada por palavras, imagens e sons de poetas, cineastas e músicos que também se encontram nesta terra estrangeira, lugar desconhecido e negativo da criação.
Mas há vivos em JLG/JLG, e entre eles Godard elege as mulheres. Mulheres de vários nomes, cegas ou Cassandras. A elas ele atribui o mais nobre posto do filme entre os vivos (os homens são brutos ou burocratas): fonte de saber do passado e do futuro. Elas enxergam o filme ainda não feito; apontam, em uma língua morta, para o renascimento na eternidade. A visão (ou sua ausência) é o ponto chave: cegas, elas não se deixam levar pelas aparências; visionárias, enxergam para além delas. Nos dois casos elas podem transitar entre tempos e realidades, vislumbrando e frequentando a outra pátria espiritual. Mas há uma em particular, cuja imagem não podemos jamais ver, nem em Rolle nem no espaço da casa, mesmo sabendo que ela é tão indissociável da vida e do cinema de Godard ali quanto seria o som da imagem em “Sonimage”, a produtora que criaram juntos no passado. E é seu nome que responde, do lado de lá do mundo, ao chamado do cineasta quando ele, só, em casa, lê: “Enquanto a orquestra toca seu repertório fora de moda, entre a multidão banal eu a avisto. E você, divina, em silêncio, com os olhos semicerrados”. E na trilha, uma voz interrompe: “Eu sou Anne-Marie”. Se em JLG/JLG a pátria utópica é acessada sonoramente, é lá que ele coloca sua companheira, lado a lado, não de mortos, mas de amigos, daqueles para quem ainda tem perguntas.
Patrícia Mourão
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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