França, 1996, cor, 35mm, 80’
Um grupo de atores vai a Sarajevo para montar uma peça de Musset. Lá Godard encena a guerra como teatro do absurdo. Em paralelo, um cineasta trabalha no seu filme, Bolero fatal, e precisa lidar com as contradições do cinema: arte e ao mesmo tempo comércio ordinário.
A primeira cartela de Para sempre Mozart, “36 personagens à procura da História”, sugere a necessidade de estabelecer uma relação real e efetiva deles com seu tempo e o seu absurdo. Assim, os próprios personagens se tornam seres históricos e no caminho para Sarajevo são aprisionados por soldados. A impotência do cinema frente à guerra, grande questão do cinema moderno, volta aqui como um painel terrível de ações divorciadas da razão. O filme parece perguntar: apesar de impotente, o cinema tem algum papel frente à guerra? Qual? Se Goya para Godard é a chave para esboçar uma resposta, é porque o pintor abriu mão de uma representação da guerra (coisa que a organizaria em termos racionais – entre vencedores e derrotados), preferindo um retrato insano de mortos e assassinos.
Na aposta godardiana, Para sempre Mozart é um filme também sobre o cinema como ato de civilização que existe nas tramas de um impasse incontornável. Ou ele é crítico da barbárie ou corre o risco de se transformar em mero espelho dela. O caminho é difícil e cada gesto do filme revela ao mesmo tempo o fracasso e a grandeza do cinema, igualmente implicados no seu esforço de auto-negação, dialetizado pela criação de uma forma difícil, árdua.
Árdua, mas melodiosa. Godard faz uma conjugação de elementos visuais ou textuais – variáveis, complexos – para exprimir ideias acerca dos assuntos que o obcecam: cinema e guerra. Mozart então, para além do paradigma do artista, se torna também criador análogo: em Godard, como em Mozart, o dualismo temático. O ritmo enriquecido por pausas em estruturas com temas simples ao invés das longas melodias. A harmonia de Mozart é semelhante, também, à montagem de Godard, ambas verticais: uma melodia acompanhada por acordes ou progressões harmônicas lentas, que vão de um ponto ao outro por um longo processo de encadeamento.
Frente ao automatismo da ideologia, a complexidade da forma e o inferno de sua criação. O filme, portanto, vai dar na filmagem de Bolero fatal em uma praia. “O que fazer, qual a câmera?”, é a pergunta primordial do assistente. Frente ao real, o ato do cinema surge como indagação. O personagem do diretor não quer a representação. Ele tem o mundo (o vento, a chuva, o mar) em ebulição, mas a atriz insiste em representar para a câmera um texto sem coração. Se um diálogo entre diretor e assistente cita John Ford, é porque o diretor americano conformava o que estava prescrito no papel (no roteiro) ao que estava inscrito no real (nos atores, na natureza). Essa dialética fordiana é a tarefa de Ulisses do cineasta. Como conformar uma ideia esboçada à matéria tortuosa do real? Cabe ao cineasta em seu ofício fazer uma radical negação. Negação de que? Do poder mistificador da imagem que dissimula sua violência. É nos vetores dessa negação que o cineasta tenta extrair do cinema um “sim”. Um “sim” difícil, quase impossível, que leva a atriz de Bolero fatal à exaustão.
Conflito mozartiano, portanto. É sabido que Mozart reclamava que os cantores não atuavam corretamente. Ele dizia que nos recitativos os cantores queriam cantar as notas escritas, quando na verdade deveriam buscar o canto. Como muitas vezes não conseguiam fazer como ele gostava, o próprio Mozart expurgava a parte, alegando que preferia não ouvir a ária mal cantada porque ela comprometeria a dramaticidade da ópera, chamando os cantores de incompetentes. O compositor ficava frustrado quando isso acontecia, alegando que sua obra ficava mutilada. Um paralelo significativo, pois Mozart, como personagem de Godard, é o último a entrar em cena.
O compositor austríaco é evocado não só como criador obstinado (insatisfeito com a execução das suas peças que nunca se dão exatamente como previsto na ideia original), mas como artista que opõe sua arte à cultura e logo se vê hostilizado por ser exceção (“muitas notas”, alguém diz). Também aqui Marivaux é evocado como citação. Dramaturgo de exceção, visto como problema por Voltaire e pela tradição da comédie française, por ser “complexo demais” e logo, um problema. O personagem-cineasta e seu filme em Para sempre Mozart são hostilizados por uma plateia que não quer poesia, recusa filme em preto e branco, mas quer “ver peitos”. O confronto é drástico. Para Godard, a intervenção histórica do artista é afirmar a arte frente à cultura, uma máxima godardiana já conhecida. Godard e seu personagem cineasta em Para sempre Mozart estão ao lado de Marivaux e Mozart. Esse embate entre a exceção e a regra tem uma dinâmica histórica. E a verdade histórica de Godard é a absurdidade de um mundo regido pela violência – da guerra e do capital. A guerra como teatro do absurdo, o cinema em uma tensão inconciliável entre o comércio ordinário e a criação difícil.
Francis Vogner dos Reis
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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