França, 2001, p&b/cor, 35mm/vídeo digital, 94’
Edgar tem um projeto artístico sobre o amor, no qual pretende mostrar a vida de três casais de gerações diferentes. Tentando solucionar a crise criativa que atravessa, vai ao encontro de Ela, mulher intensa e sofrida que o conhecera e impressionara dois anos antes. Mas ela não topa entrar no projeto.
Godard nunca teve medo de se expor em seus filmes, patenteando sua pré-disposição, sua necessidade mesmo, de dialogar com o “outro abstrato” (espectador) por meio do cinema. Em Éloge de l’amour ele propõe uma conversa íntima beirando o confessional, que confere ao filme uma fragilidade um tanto rara dentro da sua obra de cunho mais ficcional. Sentimos estar diante de uma obra em crise (daí sua natureza fragmentária e contraditória) que busca abertamente compartilhar suas dúvidas, incertezas e inseguranças. Isto aproxima o cineasta de L’éloge de l’amour do personagem Godard de Après la Réconciliation, dirigido por sua companheira Anne-Marie Miéville e filmado na mesma época. Logo que o filme começa, somos impelidos a um debate que é ao mesmo tempo pessoal e universal.
Edgar está em crise criativa: seu projeto artístico (uma ópera, uma cantata, um filme, uma novela) tem a ver com a história de três casais: jovens, adultos e velhos. Cada casal tem a ver com um dos quatro momentos do amor: encontro, paixão física, separação e reconciliação. Ele diz: “Com os jovens é evidente. Passamos por eles na rua e dizemos: são jovens. Com os velhos é a mesma coisa. Antes de tudo pensamos: olhe lá um velho. Mas com os adultos é menos óbvio. Eles precisam de uma história”. A crise se instala porque Edgar não sabe contar essa história, por falta de interesse ou, o que é mais provável, por pura inaptidão. No entanto, para que o projeto não morra, ele precisa ter as três idades. Isso o leva a uma paralisia criativa, o que em Godard significa paralisia da vida. Edgar está absorto e perdeu contato com o mundo. Ele teoriza, mas não vive. Vinte anos antes, em Passion, Jerzy Radziwilowicz dizia a Isabelle Huppert que para criar era necessário viver. Talvez por isso só será possível alguma transformação em Edgar a partir de seu encontro com Ela (nome da personagem interpretada por Cécile Camp).
O que nos leva à cena que me parece o epicentro do filme. Ela e Edgar cruzam parte de Paris a pé, madrugada adentro. Ele quer incluí-la em seu projeto, mas ela resiste. Já é de manhã e eles estão sob um viaduto que cruza o Sena. Ela finalmente o pergunta sobre o projeto e ele responde que este não encontra o seu caminho:
- Que caminho?, Ela indaga.
- Aquele que leva da infância à velhice.
- Você faz referencia à idade adulta?
- Se você quiser.
- Posso estar enganada, mas penso que você não tem filhos.
- Você tem razão. Eu vivo só. E você?
- Eu tenho um menino de três anos.
Paro por aqui com o diálogo, mas creio que ele traz o essencial do que Godard queria dizer com o filme. Nesse plano de 2’ 35’’, vemos Edgar e Ela de costas, numa conversa tão dolorosamente íntima que às vezes é preciso obstruir a fala com o som de um carro que passa. Estamos diante de um acontecimento único: o nascimento de um amor e seu inevitável fim. Está tudo ali. O que distancia os amantes é também o que os une. É difícil colocar em palavras o que acontece. É ao mesmo tempo a assimetria do quadro que põe os dois atores no canto inferior direito valorizando o concreto das paredes pichadas em detrimento do rio que corre abaixo, a voz doce e calma contra os ruídos de uma grande avenida, a conversa conduzida por perguntas íntimas em meio a divagações reflexivas, a relação intrínseca entre o indivíduo e o coletivo. O plano termina quando Ela diz “Eu concordo com você”. O som desaparece em fade e ficamos por um breve instante em silêncio até que a entrada de L’Atalante na banda sonora nos leva para a tela preta. Antes da cena terminar ainda a veremos sussurrar na orelha de Edgar algo inaudível e ele evocar a guerra entre romanos e gauleses ocorrida ali. No fim desse encontro, sentimos ter passado pelos quatro momentos do amor.
O último contato entre os dois será por telefone. Ela é vista à mesa, em silhueta, na penumbra, enquanto conversa com Edgar. A cena é iluminada em belíssimo chiaroscuro, e nossa atenção se concentra na voz de Cécile Camp, uma das mais tocantes do cinema recente – ao mesmo tempo forte e angustiada, de uma rouquidão sofrida e sensual que evoca Piaf ou Dietrich. Essa mesma voz dirá, ou já disse, que “a medida do amor é amar sem medida”. Após algumas tentativas de se despedir, ela acaba desligando o telefone (essa será a última vez que ouviremos sua voz no filme). O que teria acontecido se Ela não o desligasse, nunca saberemos. O que sabemos é que aquele será seu gesto final.
No entanto, o filme ainda nos reserva uma reviravolta surpreendente: o flashback (o passado em cores e o presente em p&b como já havia feito Otto Preminger em Bonjour tristesse). Com esse procedimento, Godard oferece uma segunda chance a seus personagens: eles se encontram de novo, o que os possibilita reviver e ampliar sua história. Assim, é provável que Edgar tenha apreendido algo em seu convívio com Ela e possa dar enfim seu passo em direção à vida (História). E a vida (mesmo com todo o horror frente à ela) é a soma de amor e trabalho. É provável também que a voz dela continue a reverberar, mesmo no silêncio. O filme é um empurrão para a vida!
Luiz Pretti
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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