Suíça / França, 2010, cor, 35mm, 102’
Segmentado em três movimentos, Filme Socialismo é uma coleção de conversas, fragmentos e esquetes que compõem uma espécie de arca sinfônica a cruzar o presente, o passado e o futuro da Europa.
Em suas familiares rupturas consigo mesmo, Jean-Luc Godard parece estar sempre à frente de si mesmo, em um constante movimento de autocrítica. Muito por isso, Filme socialismo, ainda que ressoe em sua obra posterior a História(s) do cinema, difere bastante de seus trabalhos mais recentes: se História(s), Elogio ao amor e Nossa música dobravam os estilhaços da História e dos próprios filmes a um raciocínio particular do diretor (por vezes explícito em sua própria presença em cena, de corpo ou voz), aqui não parece haver mastermind possível. Cacos, frases, pensamentos, línguas e olhares são organizados em sua própria polifonia.
Em um filme que parece querer de fato tomar a forma da água, o movimento primeiro é o de diluir uma ordem possível nessa explosão de materiais e ruídos que se instalam neste navio – espécie de nova arca de Noé. Godard retoma a História como tema central, mas, se no final da década de 1990 o vídeo era o que possibilitava a remontagem da memória pessoal na escrita póstuma (História(s) do cinema), vinte anos depois ele se torna uma aberração pós-deleuzeana, inviabilizando qualquer possibilidade de ordem ou catalogação. Se antes predominavam as fusões, a construção de sentido pela justaposição de opostos transformados em um mesmo, agora existe apenas a harmonia do choque, a possibilidade de cortar de uma versão de navio de What a feeling, de Irene Cara, para um tema de violinos que começa exatamente na nota suprimida da canção, gerando continuidade na diferença. A escrita da História vem repleta de dropouts de vídeo, com o áudio saturado e a imagem pixelizada das câmeras fotográficas e dos celulares – trabalhados como a variação da grossura da camada de tinta que se coloca sobre a tela –, e hoje parece evaporar, miando junto aos gatos em uma tela de computador. O miado, porém, permanece o mesmo desde o Egito antigo: a História existe, mas seu parêntese plural hoje se faria redundante.
Diante desse excesso indistinto, o primeiro arco de Filme socialismo reproduz o ritmo e o desenho do próprio pensamento. Ideias são concatenadas – inúmeras, a todo segundo, por vezes convivendo e se entrecruzando no tratamento individual das caixas de som laterais – sem deixar traços aparentes de seus encadeamentos que sejam detectáveis no tempo da projeção do longa. É um filme que, em sua duração, convida o espectador a pensar separado, a partir dele, sem com isso alijá-lo. Ao mesmo tempo em que a estrutura do filme se abre ao qualquer, uma das personagens diz que o digital teria acabado com qualquer possibilidade de expressão. E, ao mesmo tempo, Godard filma em vídeo digital, reunindo pequenos pedaços dessa tal inexpressão múltipla, servindo-se de John Ford e de anonimidades pescadas na internet de maneira igual e indistinta. Seria Filme socialismo uma tragédia sobre sua própria impossibilidade?
É preciso descer do barco. O segundo arco de Filme socialismo se passa em uma casinha junto a um posto de gasolina, acompanhando uma família assediada por uma equipe de televisão. Na porta, um garoto louro que veste a foice e o martelo esbanja insolência, desferindo golpes com uma falsa espada toda vez que a equipe de televisão tenta invadir aquela privacidade. É um garoto que respira arte e musicalidade: sopra o canudo no leite quando o saxofone entra na música de fundo; rege uma orquestra invisível com sua falsa espada; senta à escada com tela e pincel, para pintar "uma paisagem de outrora". A cinegrafista se aproxima – sem a câmera – e se surpreende: "É um Renoir!". O garoto responde: "Há muitas coisas bonitas que Renoir não enxergou". Se há um lugar para o artista no mundo hoje, ele parece estar todo contido nessa cena e nesse personagem: a necessidade de não se deixar diluir na água comum, de entender o que era a arte antes de se descobrir artista, e de nunca esquecer que há muitas coisas bonitas que Renoir não enxergou. Há mundos inteiros ainda não vistos.
Do indistinto pelo distintíssimo, chega-se ao terceiro e inevitável arco: as civilizações. Com ela, voltam as fusões, a possibilidade de se produzir novos sentidos e leituras. Mediado pelo artista, o fluxo de pensamento se torna novamente História. Em dado momento, ouve-se que Hollywood era chamada de Meca do cinema por conseguir que um grande número de pessoas se voltasse, em um mesmo momento para um mesmo lugar: a tela. O filme (no singular) é o último socialismo (no sentido político corriqueiro, mas também no "social" que lhe é radical) possível: o último momento de fé, de uma anulação silenciosa e ritualística no coletivo, mas ao mesmo tempo de um magnetismo absolutamente ativo entre dois olhares: a pessoa que olha para a tela e a tela que olha de volta. Godard, autocrítico por vocação, firma um pacto no qual os aforismos e os fragmentos categóricos se sabem apenas um possível começo de conversas. E das conversas, algo de gigantesco pode surgir.
Fábio Andrade
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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