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O cinema brasileiro dos anos 90

Ismail Xavier

 

À guisa de observação inicial: o texto a seguir é constituído por extratos de uma ampla entrevista concedida pelo professor Ismail Xavier, publicada com o mesmo título, na qual várias questões aqui levantadas são adequadamente esmiuçadas. A versão completa da entrevista foi publicada em Praga, nº 9, São Paulo, junho de 2000, pp. 97-138.

Como falar do mundo depois de tanta saturação e desconfiança endereçadas às imagens, notadamente àquelas inseridas em códigos já conhecidos, domesticados? Há o sentimento de que elas trazem sempre uma dimensão ilusória, o que aconselha a inserção, no filme, de "salvaguardas": dar consciência do processo de produção, ensinar a ler as imagens, criar jogos duplos em que o próprio filme, como acontecimento, explicita sua forma de inserção num contexto que o ultrapassa e dentro do qual sua intervenção adquire sentido. O fato de Kiarostami conseguir satisfazer a todas essas exigências faz de seu cinema o mais celebrado pela crítica internacional, pois ele se dirige igualmente a quem discute política e ao cinéfilo mais empedernido, como não vemos hoje nenhum cineasta aqui da América Latina fazer. O elogio ao cineasta iraniano é justo e mostra muito bem como a presença desse misto de realismo e auto-referência, herança rosselliniana e reflexão sobre o próprio cinema, engendra uma obra singular, notadamente quando ela se realiza num país periférico, com todas as particularidades de quem vive, de forma radical, as contradições entre tradição e modernidade, das quais o cineasta latino-americano, africano ou asiático nunca escapam. Nesse quadro, percebe-se que a reação da crítica diante de filmes dispostos a discutir de modo explícito questões políticas depende muito das soluções encontradas pelos cineastas para atacar frontalmente esses problemas. No limite, vem a indagação: como falar do mundo hoje?

No Brasil isso, já há algum tempo, tem se traduzido nas tensões entre incorporar essas desconfianças ou inventariar a experiência nacional, o que requer um mínimo de confiança nas virtudes revelatórias da imagem.

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Embora o cinema de ficção no Brasil tenha criado, principalmente nos anos 60-70, uma forte tendência de fala política totalizante, pautada por diagnósticos gerais do país, as experiências do trabalho, da migração e da pobreza foram postas em imagens de uma forma mais despojada, em termos de composição e luz, fazendo com que os aspectos conceituais ligados a noções de classe e nação se articulassem com inquietações de tipo estético-formal não-classicizantes, mais ligadas à tradição modernista.

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O Cinema Novo carregou de referências textuais, ou de certa opacidade, as próprias imagens que veiculavam seus empenhos político-sociais, uma vez que já aí se manifestavam os problemas a que me referi acima, resolvidos na forma modernista em que ruptura estética e crítica social procuravam caminhar juntas. Naquele momento, mesmo filmes realistas canônicos, desses difíceis de encontrar hoje, tiveram lugar de honra – como Vidas secas, por exemplo. Isso se devia a que representavam de fato uma ruptura no contexto do cinema, uma vez que, para os cineastas modernos, o importante era combater as convenções naturalistas cristalizadas em Hollywood, no cinema de estúdio, nos gêneros mais industrializados, que afastavam o cinema de um inventário do mundo e privilegiavam o entretenimento mais ameno. Foi o momento em que citações do cinema dentro do cinema e manifestações claras de afinidade estilística com obras de autores preferidos eram canais de expressão de uma cinefilia que continha uma forte dimensão utópica num futuro melhor da arte e da sociedade. Havia a fé numa vocação emancipadora que, uma vez propiciada por uma prática opositora a Hollywood, desencadearia um processo de desalienação. O cineasta se via como portador de um mandato que, no caso brasileiro, se concebia como vindo do próprio tecido da nação, suposto muito mais coeso e já constituído do que, em seguida, a realidade veio mostrar. Conhecemos os rumos da cultura e da política nos últimos anos, que resultaram, para o cineasta brasileiro, nesse sentimento de perda do mandato, de fim da utopia do cinema moderno. Como decorrência, há um deslocamento da própria auto-imagem do cineasta, que vive ainda a política da identidade nacional, da necessidade de um cinema brasileiro, mas não traduz em seus filmes, com raras exceções, a mesma convicção de ser um porta-voz da coletividade, terreno esse muito mais incorporado, hoje, à retórica da Rede Globo, com sua versão industrializada e mercadológica do nacional-popular, bem estampada nas novelas e minisséries.

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Há um mito muito reiterado hoje de que no passado mais lembrado, o dos anos 60-70, houve uma unidade ideológica e mesmo de estilo no conjunto do cinema, e muita gente esquece que a produção em tais décadas foi muito mais diversificada nas posturas e no estilo do que um panorama em rápidas pinceladas permite supor. Não endosso esse mito, isso de olhar o passado e só ver um monolito cinemanovista a inibir alternativas, num contexto que contrastaria com as amenidades pseudo-democráticas do sistema de produção vigente e do próprio cinema que ele favorece, marcado pela diversidade como um valor. Sim, esta é bem-vinda, mas se faz presente hoje num clima morno e dispersivo, correlato a uma falta de interesse pelo debate que possa confrontar alternativas estéticas e adensar os projetos.

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Ressalvadas as exceções de sempre, a relação de boa parte do cinema com a experiência social é tímida, pouco afeita ao que é polêmico e ainda em busca de soluções para o problema das relações entre linguagem, entretenimento, convite à reflexão e aproximação crítica das questões trazidas pela conjuntura. Há um esforço de elaboração das tramas e da psicologia das personagens, exercita-se mais a dramaturgia no sentido clássico, mas se canalizam os conflitos para o terreno da moralidade. O fantasma da crise da representação leva ao imperativo da auto-referência ou à composição consciente de um esquema que se sabe convencional, regrado, dialogando mais com os gêneros tradicionais. Isso, em filmes mais inquietos, convive com a procura das marcas do real, o que leva à invenção de estratégias de alusão que permitam superar certos impasses do cinema contemporâneo na sua relação com o mundo, já que ele se sente por demais, talvez, um jogo de linguagem. [...] Os anos 90 têm feito valer a presença da tradição, de um cinema brasileiro que, enfim, mostra ter uma história, não sendo mais possível a idéia de um recomeço absoluto. Somos instados pelo próprio cinema a fazer cotejos, trabalhar o dado novo em relação ao passado.

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No cinema, há o nacional como mercadoria e o nacional como problema, sendo nos filmes mais autorais que a retomada do tema histórico se deu com maior interesse, quase sempre focalizando o sertão. Houve aí um diálogo consciente com as tradições do próprio cinema, em seu trato com a questão da violência no Brasil – em sua versão rural (o filme de cangaço) e em sua versão urbana (o crime organizado, os fogos cruzados na favela, a questão do menor).

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As crianças despontam como as últimas personagens a sancionar o drama sentimental levado a sério e sem subterfúgios, a tornar possível um esquematismo moral ofensivo para quem procura algo mais realista distante das parábolas de inspiração bíblica. Destas, Walter Salles, com seu talento, nos ofereceu a mais bem-sucedida, em que o final lacrimoso é lance de melodrama que, no entanto, procura a sanção estética na poeira de contundências sociais que o perfil documentarizante de Central do Brasil consegue levantar, seja em suas imagens de abertura, seja na estrada. O desfile de rostos a ditar cartas é de uma densidade rara no cinema brasileiro, tanto quanto algumas imagens desse percurso de migração às avessas que dialoga com os filmes do Cinema Novo, embora repita o pior dos clichês antiurbanos, tão a gosto daquela polarização ética entre arcaico e moderno, que bem conhecemos.

Numa conjuntura em que a tendência do cinema é se concentrar no eixo moral de experiências vividas em encontros singulares, num momento em que o cinema industrial já descartou, nos seus filmes menos infantis, o império das figuras do bem ou dos humanismos dotados de êxitos, não surpreende o efeito catártico e o sucesso de um cinema recuperador de esperanças, notadamente aquelas mediadas por situações limite vividas por uma inocência desprotegida.

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O rebaixamento da reflexão, de qualquer modo, não é aí mais grave do que aquele encontrado na polarização contrária, quando o cinema não faz senão reiterar a desqualificação universal da humanidade em nome de desencantos conservadores com a corrupção do mundo, tomada como destino irremediável. Tais diatribes têm uma carga de mal-estar que, em princípio, assinala a crise, nega o mar de rosas, mas seu movimento mais comum é o da despolitização, num efeito próximo ao conseguido pela mídia com seus clichês cotidianos em torno da sujeira dos políticos, como se esta lhes fosse exclusiva.

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Dentro dessa linha problemática da desqualificação geral, posso já comentar um exemplo do maior interesse: o da contundente provocação de Sérgio Bianchi em Cronicamente inviável, título que por si só já é um diagnóstico. Trata-se de um filme que, por levar o mal-estar ao paroxismo, pode sacudir o terreno e contribuir para um salto de qualidade no cinema. Chega-se ao ponto limite da discussão moral, e aí se faz mais forte o senso da reflexividade. Bianchi, ao contrário da diatribe conservadora, traz ao centro a ironia ferina de quem tem a lucidez de não poupar a si próprio. Posto isto, o ressentimento se escancara, vira tema de conversa, atinge a condição de traço fisionômico de uma classe média feita de denegações, infeliz porque está no seu lugar e gostaria de estar fora dele. Composição em mosaico, a montagem justapõe lugares nacionais emblemáticos, palcos de experiências limite de confronto, feitas de ofensa e crueldade exatamente entre os que estão por baixo, ou levemente com a cabeça acima da superfície. São os elos menores da corrente que podem se apresentar em carne e osso, como o patrãozinho xingado que já não mais representa a ordem do capital em sua potência mais efetiva. Em seu começo, o filme explicita nosso problema da representabilidade: como tornar visível a lógica da iniqüidade? Poderia ter avançado mais nesta direção. De qualquer modo, seu esforço de totalização põe aqui os brasileiros no laboratório do medo, das hipóteses idílicas ironizadas, dos ódios recíprocos, que desmontam o mito da simpatia e do jeitinho, dos comentários ressentidos, que azedam a alegria e o carnaval.