Portal Brasileiro de Cinema Trajetórias que se cruzam: A. P. Galante, Maristela e Boca do Lixo
Trajetórias que se cruzam: A. P. Galante, Maristela e Boca do Lixo Alessandro Gamo Acompanhando o trabalho de Antonio Polo Galante como produtor, vemos o cruzamento de algumas trajetórias do cinema paulista. Alfredo Palácios foi uma das principais figuras da Companhia Cinematográfica Maristela nos anos 50: atuou como gerente de produção, produtor, diretor, roteirista e dialoguista, em pelo menos nove filmes. Graças a Palácios, Galante conseguiu seu primeiro emprego em cinema, trabalhando como eletricista no filme Mãos sangrentas (1954). Pela Maristela também passaram vários técnicos importantes da Boca, que cruzariam com Galante, como Sylvio Renoldi, Osvaldo de Oliveira e Sergio Ricci. Com o fim da Maristela, em 1958, Palácios começa a produzir a série de TV O vigilante rodoviário (1962), dirigida por Ary Fernandes, e Galante segue o caminho de assistente de câmera em documentários institucionais de Jacques Deheizelin, além de integrar a equipe dos filmes A ilha e As cariocas, de Walter Hugo Khouri. Com trabalhos esporádicos e pleno contato com o pessoal de cinema, Galante também começa a comprar e vender materiais cinematográficos: restos de negativos, câmeras, equipamentos de iluminação, moviolas e gravadores Ampex. Em 1966, ele reencontra Palácios, que resolve apoiá-lo com o dinheiro da venda do Vigilante. Mas Galante permanecia insatisfeito, e mais interessado em trabalhar diretamente com filmagem. Numa dessas transações de compra e venda de material cinematográfico, Galante encontra os negativos de um filme inacabado que havia sido dirigido por Ody Fraga cinco anos antes. Vendo aquele material de cerca de quarenta minutos, Galante resolve terminá-lo e chama um amigo da época da Maristela, o montador Sylvio Renoldi. Os dois enfrentam vários problemas. Já não se poderia, por exemplo, usar o mesmo ator, após tantos anos. Num golpe de sorte — e de oportunismo —, um dia Galante e Renoldi pegam um táxi e percebem que o motorista era muito parecido com o ator. Resultado: o taxista acaba fazendo as pontas necessárias para montar o filme. Mesmo assim ainda faltavam alguns minutos para que se atingisse um tempo-padrão de exibição, então Galante e Renoldi resolvem filmar um striptease numa boate aonde o personagem iria solitariamente todas as noites. Esse artifício produz um dos primeiros filmes brasileiros em que o apelo erótico era um chamariz para o público. Os dois ainda filmam algumas cenas de casais em praças e parques de São Paulo e cenas de ruas e luminosos à noite. Apesar dessas dificuldades, o filme, um tanto irregular, apresenta momentos memoráveis, como a cena de abertura, provavelmente uma das mais ágeis do cinema brasileiro. O título é mudado de As eróticas para Vidas nuas e eles finalmente conseguem espaço de exibição no cine República — com mais de 4 mil lugares. Galante faz propaganda em toda a região da Cinelândia, no centro de São Paulo, e surpreendentemente o filme torna-se um sucesso. Alfredo Palácios, que ainda mantinha a sociedade com Galante no comércio de equipamentos, percebe seu tino — além da sorte e do faro — para produção e propõe uma nova sociedade. Naquele momento nasce a Serviços Gerais de Cinema, ou Servicine. Na mesma época, o estreante diretor catarinense Sylvio Back aparece com o seu Lance maior, que precisava ser finalizado; e a empresa entra na jogada. A segunda cartada foi idéia de Galante: O cangaceiro sanguinário. Nesse filme, a Servicine entra diretamente na produção e, para isso, aciona todo um elenco de técnicos paulistas, que formaria o “núcleo duro” das produções da primeira fase da empresa: Osvaldo de Oliveira, na direção, no roteiro e na fotografia; Sergio Ricci, na direção de produção; Miro Reis, na equipe; e Sylvio Renoldi, na montagem. Os elos de trabalho — e de confiança — entre Galante e Palácios vinham do tempo da Maristela e de um filme importante na formação de uma série de grandes profissionais do cinema paulista: O cabeleira (1962), de Milton Amaral, do qual participaram Cláudio Portioli, Pio Zamuner, Miro Reis e, como roteirista, Ody Fraga. Na Servicine, a grande força era Osvaldo de Oliveira, responsável por várias funções nos filmes produzidos. Ele vinha da Maristela e continuara trabalhando para Palácios como diretor de fotografia da série O vigilante rodoviário. Tinha uma visão apurada da decupagem, do enquadramento, uma direção segura e ainda escrevia histórias que caíam no gosto popular. Como diretor de fotografia, tornou-se mestre de uma geração que começava a trabalhar naquele período, gente como Antonio Meliande, Cláudio Portioli, Rubens Eleutério e Antônio Moreiras. Na divisão de trabalho, Galante ficava com a parte relacionada à administração e Palácios se envolvia mais diretamente com a produção. Ambos foram pioneiros numa prática que depois se tornou recorrente na Boca: a associação com os exibidores para levantar recursos. Isso, e mais uma série de instrumentos estatais de apoio ao cinema, os ajudou a produzir 28 filmes entre 1968 e 1976. Em alguns deles, só participaram da finalização e da negociação, mas trabalharam num grande leque de filmes de diferentes gêneros: filmes experimentais como O pornógrafo, Em cada coração um punhal e A mulher de todos; “westerns feijoadas” como Rogo a Deus e mando bala; filmes de cangaço como O cangaceiro sanguinário e O cangaceiro sem Deus; filmes sertanejos como Sertão em festa e No rancho fundo; comédias eróticas como Os garotos virgens de Ipanema; dramas como Lance maior e À flor da pele; e filmes de época baseados em clássicos da literatura como Lucíola, o anjo pecador. Esses filmes foram a primeira oportunidade de muitos diretores, de Márcio Souza e João Batista de Andrade a Alfredo Sternheim e Francisco Ramalho Jr. A associação em torno da Servicine durou até 1976 e Galante constituiu no mesmo ano outra importante empresa da Boca: a Produções Cinematográficas Galante. O veterano Palácios, ainda em 1976, dirigiu um episódio de um longa produzido por Ary Fernandes, mas só retornou à produção de filmes em 1978, já com outra empresa, que durou apenas dois anos. Galante continuou a produzir em associação com os exibidores, principalmente com a empresa Sul, trabalhando com os mais diversos gêneros e diretores. Desde a fase da Servicine, seu braço direito nas filmagens era Osvaldo de Oliveira, que além de dirigir sete filmes para ele ainda trabalhou na fotografia de outros. Nos primeiros anos, a P. C. Galante produziu uma série de filmes de presídios, como Presídio de mulheres violentadas e Escola penal de meninas violentadas. (É curioso lembrar que Galante, orfão desde os dois anos de idade, viveu até os quinze num orfanato). Esses filmes de presídio, que fizeram sucesso na época, ajudaram a capitalizar a produtora e possibilitaram que ela se arriscasse em outras empreitadas. Galante deu oportunidade para que Antonio Meliande começasse a dirigir, produziu quatro longas e um episódio de Carlos Reichenbach, dois longas de Walter Hugo Khouri, dois de Ody Fraga e filmes de João Ramalho Jr., José Miziara e Alfredo Sternheim, num total de aproximadamente trinta filmes até 1987. Quando a Boca entrou em decadência, com a crescente dificuldade de manter os mesmos níveis de produção, ele começou a se desinteressar pelo trabalho. A partir de 1982, produziu alguns filmes muito baratos dirigidos por Conrado Sanches, que, como Osvaldo de Oliveira, também escrevia, fotografava e dirigia, apesar de não imprimir a mesma qualidade. Em 1986, Galante produziu, em parceria com a Embrafilme, Anjos do arrabalde, de Carlos Reichenbach, mas os caminhos do cinema brasileiro já não lhe permitiam continuar o trabalho de produtor. Em 1998, Galante tentou retornar à produção com Casa de meninas, de Inácio Araujo, e com O carcará, de Ícaro Martins, mas antes se aventurou numa produção idealizada por seu antigo parceiro na empresa Sul que teria a participação da dançarina Carla Perez. Com o fracasso do filme e os prejuízos da empreitada bancada por Galante, ele se recolhe novamente. A trajetória de Antonio Polo Galante é própria de uma época em que havia a perspectiva de continuidade no trabalho com o cinema e, com isso, era possível projetar carreiras, que por vezes começavam nas funções menos prestigiadas da técnica. Uma época que mantinha o diálogo com certas tradições de trabalho. Um panorama no qual o produtor podia apontar caminhos, como deve ocorrer para a continuidade de uma boa cinematografia. |