Portal Brasileiro de Cinema A coisa da imagem e a preponderância do afeto
A coisa da imagem e a preponderância do afeto Fernão Pessoa Ramos* Walter Hugo Khouri é um diretor singular, que atravessa a segunda metade do século XX com uma obra marcadamente pessoal. Dos muitos traços estruturais que podemos eleger para abordar sua filmografia, talvez possa ser destacada a singularidade de ser paulistano. Khouri é antes de tudo um cineasta nascido em São Paulo, debatendo-se com as contradições e o isolamento da metrópole no cenário cultural brasileiro. Nenhuma outra origem poderia lhe dar densidade suficiente para criar uma obra extensa, girando em torno de um tema central obsessivo, que passa ao largo das grandes questões sociais que marcam nosso cinema nos anos 60 e 70. Na obra do diretor há um grande ausente, chave para a compreensão de sua singularidade: a questão popular não está no horizonte de seus filmes, nem aparece como móvel recorrente para seus personagens. Os dilemas provocados pela má-consciência na representação da cultura popular atingem frontalmente a maior parte dos grandes autores do Cinema Brasileiro. Cedo ou tarde, os cineastas nacionais parecem ter a obrigação de dedicar-se a um acerto de contas com a vida cultural e social do lado de lá da fratura social brasileira. Em Khouri, os dilemas de Marcelo e de outros protagonistas passam ao largo deste excelente móvel para a ação dramática. A grande metrópole e o estilhaçamento das tradições fornecem-lhe substância para dar corpo à característica blasé de seus personagens, permitindo que estes possam evoluir sem a exasperação existencial gerada pela exclusão social. Os personagens de Khouri mergulham na vida da metró pole em busca de uma espécie de afirmação sexual que vai além da conquista. O que move estes personagens (e, em particular, Marcelo) é o narcisismo masculino. No cinema de Khouri respiramos o universo da realização masculina, do masculino em busca reiterada de afirmação. A chave para esta realização (para que a libido sexual retorne ao ego, narcisicamente satisfeita) é a conquista sexual da mulher. Mas isto não pode transparecer deste modo, enquanto busca. O revelar-se, afir mando-se enquanto carência, impediria, na mesma medida, sua realização. E é neste ponto que aflora o verniz cultural que cerca Marcelo: os constantes planos com livros – com preferência para títulos ligados ao existencialismo; os quadros e esculturas que cercam suas finas residências; o gosto pelo jazz. Sua filosofia niilista é exposta nestes momentos, quando a satisfação pela conquista da “presa” feminina ameaça tomar conta da ação. O niilismo que Marcelo ostenta é uma fachada, que necessita sustentar um motivo para além do que realmente inte ressa: a conquista sexual. Marcelo dedica-se, obsessivamente, a ten-tar articular uma combinação, pouco convincente, entre niilismo e avidez sexual. A repetição da idéia talvez seja o sintoma de sua impossibilidade. O que está em jogo, como móvel, por detrás desta fachada é a afirmação narcisista do “Eu” masculino 1 . O niilismo de Marcelo e o tom blasé que envolve os protagonistas masculinos khourianos tomam sua real densidade ao terem por pano de fundo a metrópole paulista. É no anonimato da cidade, excessiva mente grande, na sobreposição de valores, gerada pela oferta exuberante, que o tom blasé encontra meio adequado para expressão. O longo monólogo sobre São Paulo que inicia Eros, o deus do amor, é significativo desta postura. Eros é um filme retrospectivo e a cidade/ metrópole parece ser cenário feito sob medida para as recordações/ mulheres que aglomeram-se sem sentido nem gravidade. O vazio khouriano é o vazio das aglomerações urbanas gigantescas, sem raízes históricas, sem tradições culturais orgânicas, onde os estímulos são tantos que acabam perdendo a valoração. O tom blasé é o tom próprio de São Paulo, face ao caleidoscópio cultural que lhe atra vessa indiferente, face aos outros “sonhos felizes de cidade” que constantemente lhe chegam aos olhos, como Marcelo olha o passar das mulheres2. E neste tom podemos incluir crenças políticas e o deslumbramento provocado pelo populismo nos anos 60. Talvez possamos distinguir na filmografia de Khouri três fases. A primeira surge ligada às conseqüências do declínio da Vera Cruz e à afir mação do chamado Cinema Independente. Tem início com O gigante de pedra (seu primeiro filme, de 1952/53) e possui em Estranho encontro (1957) sua realização mais bem acabada, juntamente à Na garganta do diabo (1959), um clássico de Khouri mal conhecido. Estilisticamente, esta fase caracteriza-se por uma decupagem que não tem a significação de tempos mortos em seu eixo, marcada pela estrutura de campos/contracampos do classicismo cinematográfico. A trama narrativa também obedece à estruturação clássica, na relação entre motivo e ação dramática. A partir de Noite vazia (1964), sentimos um flexão em sua obra, sob a influência do novo cinema europeu dos anos 60. Respiramos Antonioni em obras desta época. Noite vazia, Corpo ardente (1965), o episódio de As cariocas (1966) e As amorosas (1968) são filmes carregados de planos mais extensos e de olhares sem articulação actante. O quadro da imagem e sua extensão temporal, no plano, tensionam a representação em busca de um ritmo que estoure a face mais imediata da ação ficcional. A utilização do recurso do faux raccord (montagem, com salto, fora de continuidade, na qual o gesto/ação é repetido em cascata) liga Khouri às experiências dos “novos” cinemas. A busca do vazio existencial encontra uma correspondência estilística madura, conformando um todo autoral consistente. A floração estilística de Noite vazia é pressentida pelo próprio autor, em depoimento: “com Noite vazia houve para mim um estalo, algo que de repente aconteceu depois de uma longa espera” 3. Alguns consideram estes filmes dos anos 60 como seu momento mais significativo. A terceira fase da carreira de Khouri é marcada pelo encontro com o universo temático, estilístico e de produção do Cinema da Boca/ Pornochanchada. Mais uma vez, a relação com São Paulo surge na interação com o cinema que caracteriza a cidade. Da Vera Cruz e seus espólios, passando pelo Cinema Independente, excluindo o universo cinemanovista e adentrando fundo na temática da pornochanchada, Khouri mostra uma filmografia que tem a cara do trajeto do cinema em São Paulo. Talvez seja um pouco provocativo dizer que Khouri, juntamente com Carlos Reichenbach, são os dois grandes autores da pornochanchada, gênero tão desconhecido quanto desprezado. Afirmação provocativa, pois a obra de Khouri (como a de Reichenbach) não se esgota nesta relação. Mas é nítida a presença, nos filmes desta fase, de traços estilísticos do gênero. O exibicionismo do ato sexual talvez seja o primeiro deles. Na pornochanchada a ação ficcional é interrompida por longos períodos descritivos (coisa rara na narrativa clássica) para a representação do sexo. Também em Khouri este tipo de estruturação narrativa descritiva é bastante comum. Outro elemento recorrente na obra de Khouri (e que encontramos na pornochanchada) são os “diálogos de papel”. Sintomáticos de um trabalho excessivamente pessoal (ou com pouca elaboração) de roteiro, trazem frases que soam bem no papel mas que parecem recitadas mesmo se pronunciadas pelo melhor dos atores. Deve-se também realçar o grupo significativo de atores, técnicos e produtores da pornochanchada, que trabalham em filmes do diretor nos anos 70 e 80 4. A proximidade fica ainda mais evidente quando os dilemas da “dialética do comer e do comido”5 passam a ocupar o primeiro plano das preocupações de Marcelo e de outros pro tagonistas khourianos. O domínio do sexo e pelo sexo, o sexo na cabeça, fechando o horizonte das preocupações, é uma característica da obra do diretor que vai se tornando cada vez mais dominante no decorrer dos anos 70 e 80. Particularmente, em obras como O prisioneiro do sexo (1979), Convite ao prazer (1980), Eros, o deus do amor (1982), Amor estranho amor (1982), Eu (1986), Forever (1988/90), a questão sexual é obsessiva, sendo explorada em to dos os seus limites e direções. A linha do incesto é várias vezes infringida, na evolução, sem retorno, para a realização (nunca alcançável e daí a angústia) do narcisismo pleno. O recorrente tema do incesto aponta para a falha geológica onde está o limite absoluto no narcisismo de Marcelo. O imenso ego masculino tem sua realização diretamente relacionada ao domínio sexual (ainda que, às vezes, disfarçado em postura submissa) sobre o sexo oposto. A mulher aparece em Khouri sempre modulada por este insaciável ego masculino. O recorte não está longe do eixo dominante na pornochanchada. Protagonistas femininas em Amor estranho amor, Amor voraz, Forever e mesmo em Corpo ardente acabam por definir-se existencialmente em relação ao marido, ao pai, ao amante ou ao filho, mas nunca em relação a elas mesmas. O estilo de Khouri é uma pérola única no cinema brasileiro. Em um cinema dominado pela exasperação e pela ação, a imagem de Khouri é a imagem-afeto. Khouri deixa a coisa da imagem respirar. Longos afetos delineiam-se no olhar (no olhar feminino, principalmente). A mulher olha, mas uma pedra também olha (e como olha a pedra, no jardim, de Paixão perdida; ou as pedras das montanhas de Itatiaia). As coisas, no cinema de Khouri, ocupam um primeiro plano que muitas vezes desbanca a ação. Embora a imagem-afeto seja dominante na segunda fase de sua carreira, a encontramos novamente em primeiro plano em filmes como Amor voraz e Paixão perdida, constituindo um traço estilístico estrutural que percorre o conjunto da obra. Amor voraz traz a lembrança da imagem animista de Tarkovsky, na representação dos líquidos e das coisas. O cinema de Khouri é um cinema de olhares, onde o vazio da ação periodicamente dá lugar à preponderância do afeto. A imagem-afeto de Khouri é carregada de uma interioridade melancólica que vibra bacante ao mais leve toque da sexualidade. Filhas, amigas, amantes, esposas, a todas é necessário afirmar repetidamente que o tédio tudo circunda. Mas isso vale desde de que elas mantenham-se tesas de desejos, anuladas em qualquer intuito de negar o império da vontade masculina. A imagem-afeto khouriana tem o ritmo próprio destas imagens, deixando respirar o mundo carrega do de interioridade que significam. Mas traz um jogo de cartas marcadas: o desejo tem uma linha reta que não pode ser assumida (por ser excessivamente crua). Sua multiplicação satisfaz, mas é a negação refinada que pode ser estampada. Para além de dilemas nór dicos ou existencialistas, o cinema de Khouri lida com o universo das angústias de alcova, bem mais próximo de nosso horizonte cultural. Esta é a veia que faz vibrar o autor e seus personagens, na configura ção de uma obra marcadamente coesa e autoral. *Professor da Unicamp, autor de Cinema Marginal - A Representação em seu Limite e organizador da Enciclopédia do Cinema Brasileiro 1. Alguns repórteres parecem ter dificuldades em acompanhar as ambigüidades da obra de Khouri. A afirmação narcisista de Marcelo atinge seu ápice em Forever (1988/90), na cena do incesto e em sua morte. Morte que é acompanhada da re tomada da temática/personagem Marcelo, em obras posterores cronologicamente. Eros, o deus do Amor (1981) traz uma interessante experiência narrativa em estilo subjetivo indireto: uma câmera substitui o personagem que desaparece como corpo/rosto. À esta desaparição do corpo/rosto Marcelo corresponde o hiperdimensionamento do olhar na imagética khouriana, abordado adiante. Uma detalhada abordagem da câmera subjetiva em Eros pode ser encontrada em Pucci, Renato. O equilíbrio das estrelas - filosofa e imagens no cinema de Walter Hugo Khour. São Paulo: Annablume, 2001. 2. Em artigo recente, intitulado “Te Manduco-Não-Manduca”, publicado no Suplemento Mais (Folha de S.Paulo, 29/07/2001), José Miguel Wisnick desenvolve interessante análise sobre singularidades da MPB paulista no cenário nacional, tendo a atitude blasé no horizonte (uma “sensibilidade da insensibilidade”). 3. In Folheto promocional da “Mostra 80 Anos do Cinema Brasileiro”. Arquivo Cinemateca do MAM. 4. Um dos melhores comentadores de Khouri, José Mario Ortiz, aponta esta relação em “O Cinema Brasileiro Contemporâneo” (1970 1987), in Ramos, Fernão (org.). História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Art Ed tora, 1987. 5. Sobre a presença desta temática na pornochanchada ver “A dialética do comer e do comido e outros babados”, artigo de minha autoria publicado na Revista USP (São Paulo, nº 17, 1993). |