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Início de uma biografia...

Walter Hugo Khouri

 

Pela parte do meu pai, eu sou primeira geração. Bom, libanês, nunca gosta que diga só árabe, quer que diga que ele é libanês. Bom, meu pai não era só libanês, ele tinha sangue grego também, mas era libanês ortodoxo. Minha mãe era italiana, filha de italianos, uma parte de Veneto e a outra de Basilicata de Potenza, aqui do Sul. E eu, por meu pai ter morrido muito cedo, tive uma cultura italiana, ítalo-paulista. Sou a típica pessoa representando esse tipo de cultura italiana.

Minha mistura é assim: meu avô italiano veio para cá como engenheiro para construir barragens perto de Caraguatatuba para a Light. Meu pai veio depois porque a família dele era estabelecida no mundo inteiro, desde a China até o norte da África. Ele veio talvez de passagem, acabou ficando aqui, encontrou minha mãe e acabou casando com ela. Tem muita gente aqui em São Paulo que é essa mistura: Oriente Médio, italiano, espanhol, isso é muito comum aqui, tenho encontrado muita gente assim. E daí fica o nome, muitas vezes. Por exemplo, eu tenho um neto que se chama Wagner Khouri, e esse Khouri deve representar 1/16, porque ele é muito mais italiano que qualquer coisa, ele tem origem italiana; da família da mãe dele, também são italianos.

Às vezes, a gente vê que a cara da pessoa não corresponde ao nome. Esse nome, o nome Khouri, todo mundo sabe que é um nome religioso, significa “padre”, é um nome de proteção dos cristãos contra os muçulmanos. De verdade, é de uma família que no Líbano seria Kutait e na Grécia seria Kutaito, é um nome que teria uma tradução como existe aqui Cúria Metropolitana e Le Cure e Cura, em todas as línguas latinas e do Ocidente esse nome passou (...).

Eu sou o fruto típico, assim de classe média, de pessoas de primeira e segunda geração que haviam se estabelecido em São Paulo. Minha mãe já nasceu em Paraibuna, por acaso, porque meu avô estava trabalhando lá, quer dizer, por parte de mãe, eu já sou segunda geração.

Morei no bairro do Paraíso,onde havia uma concentração tanto de italianos como de libaneses e de judeus na rua Cubatão. Naquela época, existia o número 56 na rua Cubatão, era na esquina com a Thomás Carvalhal. Era um bairro bonito, muito sossegado, com árvores e casas. Eu, inclusive, cresci tomando leite de cabra, as cabras subiam lá de baixo, de onde hoje é o Ibirapuera; claro que não havia o Ibirapuera naquela época. Mas já era um bairro relativamente moderno, calçadas, muitos carros. Tinha um tipo de vida que parecia ser muito bom, muito calmo.

Quando eu morava na rua Cubatão, estudei num pequeno colégio numa rua próxima que se chamava Afonso de Freitas, o Instituto Nossa Senhora de Aparecida. Aí eu fui para o Rio morar com meu avô, estudei no Rio quase todo o meu ginásio, voltei para cá, estudei na avenida Paulista, no Colégio Carlos Gomes, depois estudei no Bandeirantes e finalmente fui para a Faculdade de Filosofia. O primeiro ano eu fiz na Caetano de Campos. A Caetano de Campos, aquela da praça de República. Depois passou para a Maria Antônia e depois eu saí e fui para o cinema. Quer dizer, em São Paulo, eu sempre morei por lá, só depois de casado é que eu mudei para o Alto da Boa Vista, lá perto de Santo Amaro, e depois eu morei no centro, quer dizer, morei relativamente em poucos lugares em São Paulo.

Eu morei quatro anos com meu avô materno lá no Rio, por isso que eu disse que a minha cultura é mais do que tudo italiana, quando vou para lá eu me sinto realmente em casa, porque eu morei com ele. Ele era um italiano muito abrasileirado, positivista, mas intelectual, astrônomo, e tinha uma vida não reclusa. Mas, para todos os efeitos, eu sempre fui um paulista no Rio. Ia à praia, ao colégio e tudo, mas sempre fui um paulista. Morei no Flamengo, na rua Corrêa Dutra, na época que não tinha nem o aterro do Flamengo, por aí você imagina. E era uma cidade muito agradável. Eu ia ao Rio desde os anos 30. Me lembro que na Lagoa Rodrigo de Freitas tinha os barzinhos onde sentávamos. Eu estudei datilografia no centro do Rio, mas quem passa lá hoje não acredita que é a mesma cidade.

Meu avô era um matemático, além de arquiteto. Tem muitas coisas que ele fez aqui em São Paulo, inclusive a Igreja Nossa Senhora Imaculada Conceição, aqui na Brigadeiro Luís Antônio, foi ele quem construiu. Fui morar com meu avô porque meu pai morreu e a minha mãe, cuidando de duas pessoas e tudo, teve alguns problemas, porque meu pai morreu muito jovem e ela também era muito jovem. Assim, meu avô, durante algum tempo, quis que eu fosse morar com ele. Fiquei lá no Rio. Acabou indo só eu, meu irmão ficou com ela. Porque era mais fácil. Minha mãe tinha aquele trauma de viuvez muito jovem e meu avô gostava de mim.

Com esse meu avô tinha um ambiente intelectual, inclusive ele escreveu um livro sobre a “quadratura no círculo”, ele queria encontrar o número certo de Pi. É verdade, ele escreveu mesmo um livro a sério, levou doze anos com contas, e não tinha computador e tinha cálculos enormes. E ele também fazia carta astral, não no sentido astrológico, mas astronômico. Ele era muito ligado nisso e na casa dele era sempre assim o ambiente, um ambiente especulativo. E eu já tinha inquietações nesse sentido.

Eu sempre fui meio displaced, isso é uma coisa que quando a gente fala da gente mesmo é difícil, porque se você não tem um distanciamento, de tanto falar sobre você mesmo, de seu trabalho, você nunca sabe se solta “abobrinhas”. Você fala coisas e interpreta, você nunca sabe. Se você tem um certo distanciamento, começa a entender. E eu sou contra, inclusive, diretores que falam muito sobre os filmes e que tentam explicá-los, que era isso, era aquilo; em geral as coisas não estão nos filmes, estão só na cabeça deles e depois fica parecendo que é u m a indução, que tem que entender. Mas é uma coisa a que somos induzidos pela própria mídia. Mas o filme, o que é? Ninguém sabe o que é. A não ser que você premeditou. E eu só sei isso, pelas coisas que eu escrevi e tudo mais, eu sempre fui meio displaced.

Lá no Rio, como estava dizendo, eu era o paulista, eu saía e lia muito, não (era) recluso, porque eu nunca fui uma pessoa reclusa, mas tinha certas coisas, digamos, de vida separada, meio individual, individualista. Eu não gostava de Matemática. E era a maior frustração de meu avô que eu não gostasse de Matemática, e nunca consegui aprender. Eu era o neto preferido dele e ele tinha seis netos. E eu não gostava e nunca consegui aprender equação de primeiro grau e raiz quadrada, nunca. Cheguei ao terceiro clássico sem saber nada. Eu tenho uma mente aritmética de saber calcular, de pensar, quando eu penso em Física ou em números, mas essas coisas pequenas, eu nunca consegui.

Mas ele também tinha na biblioteca um clima de cultura, essa coisa do trabalho, de viver em casa, ao invés de ir num emprego, num banco; estar no escritório em casa e escrever um livro. Ele gostava de cinema e saía. Era um personagem com uma certa megalomania italiana, que tinha aquela coisa da grandeza, o contrário da minha avó, que era uma pessoa mais calma.

Eu lia muito, fiz a minha formação de leitura com livros policiais, com Tarzan, com livros de aventura. Eu tinha meu caderninho e cheguei a ler trinta livros por mês. Eu também via muitos filmes, a que eu ia com o meu avô, era a época de programa duplo. Então, se a gente fosse ao cinema três vezes por semana, via seis, sete filmes. Então foi esse o ambiente em que me criei. Mas isso acho que era uma coisa que eu já tinha desde pequeno, antes mesmo, no ambiente de casa. Esse período, eu tenho certeza, foi um período do qual eu guardo muitas memórias, quando você tem dez, doze anos, te marca muito.

Eu fiz o terceiro clássico no Bandeirantes, em 48, e entrei na faculdade em 1949. E fiquei lá até 1951, a Filosofia já estava em 51 na Maria Antônia. Fui aluno do Cruz Costas, do Lívio Teixeira, do... como era o nome do professor de Lógica.... era o Granger ou Leford ? Fui aluno do Granger e de todos esses. O Cruz Costas e a Anita eram professores de Psicologia, me lembro até hoje. A Faculdade era toda espalhada por São Paulo, o que era ótimo porque você não se chateava. E a Caetano de Campos também era gostosa, na praça da República, você podia andar.

Mas pelo cinema eu nem cheguei a fazer os exames. Em 51 eu já fui ser assistente do Lima Barreto na Vera Cruz. Então eu já estava com a mania de cinema e já estava escrevendo. Tanto que eu saí. Não lembro se saí em 51 ou em 52, mas eu já estava levando a faculdade meio assim. Eu gostava de algumas matérias, mas realmente a faculdade não me satisfazia. Não porque ela não fosse boa, mas porque eu tinha interesses tão variados.