França, 1968, cor, 35 mm, 95’
Patricia e Émile, aprendizes de revolucionários, se encontram várias noites em um estúdio de televisão para analisar imagens e sons do mundo que os cerca. Eles criticam a linguagem das mídias e procuram desmascarar o discurso do opressor, a fim de lhe opor um outro.
Filmado antes e montado depois de maio de 1968, Le gai savoir promove o encontro entre a aspiração revolucionária e os últimos lampejos da Nouvelle Vague e de suas estrelas ‒ Jean-Pierre Léaud, astro desde o início, e a nova vedete, Juliet Berto. Produzido pela televisão francesa (ORTF), o filme não foi exibido nem na TV, nem nas salas de cinema, e sofrerá uma censura parcial (Godard manterá os “bips” para inscrevê-la no som). Infantil e libertário como a Nouvelle Vague e 1968, melancólico e revoltado como o pós-1968, Le gai savoir é inclassificável do ponto de vista de uma história linear do cinema ou das ideias. Embora mais tarde Godard o tenha considerado “ainda excessivamente revisionista”, sua potência anacrônica e formal mantém uma força e uma atualidade esplendorosas.
Filmado no huis clos de um estúdio de televisão mergulhado na obscuridade, este é um filme crepuscular que narra os sete encontros noturnos entre Émile Rousseau (referência a Emílio, de Jean-Jacques Rousseau, que Godard deveria ter adaptado para a ORTF) e Patricia Lumumba (síntese da primeira heroína godardiana, a Patrícia de Acossado,1959, e do nome do líder congolês Patrice Lumumba, assassinado em 1961). Os dois personagens assumem um protocolo experimental, um programa trienal de reflexão sobre as imagens e os sons: coletá-los, decompô-los, enfim, “fabricar dois ou três modelos de sons e de imagens”. Mas, se a empreitada é séria, o tom é frequentemente lúdico: essa “gaia ciência” traduz um pensamento herético próprio ao ensaio, do qual o filme mantém a abertura, num tom autocrítico e vagamente niilista, nietzschiano, que ressoa nas últimas palavras de Patricia: “é um pouco o nada o que nós descobrimos, não?”. E Godard prossegue, impiedoso: “Este não é o filme que deveria ter sido feito: é antes como, se devemos mesmo fazer um filme, é necessário percorrer uma parte dos caminhos que percorremos”. Segundo essa estética política, o verdadeiro autor não poderia mais ser um indivíduo, pois outros cineastas vão partilhar com ele uma luta coletiva e internacionalista (Godard cita Bertolucci, Straub, Glauber Rocha). Godard encontra Emílio em sua intenção pedagógica e em sua forma ensaística mais do que em seu conteúdo de fundo – Rousseau falava de uma “coleção de reflexões e observações, sem ordem e quase soltas”; Patricia, no filme, fala de “um amontoado de experiências”.
Rodado em película, Le gai savoir é ainda um ensaio sobre e contra a televisão. O estúdio-laboratório permite um estudo à distância dos sons e das imagens: o que a fotografia introduziu, o fonógrafo e o cinematógrafo continuaram, a televisão banalizou (tele-visão: visão à distância). Assim, Godard tenta reinventar a um só tempo o cinema e a televisão, por meio de uma metalinguagem radicalmente crítica. Por exemplo, os dois protagonistas encaram amiúde a câmera, ou seu entorno, como se interpelassem o espectador televisivo ou cinematográfico. Justo quando eles próprios estão olhando para as imagens, numa mise en abyme da situação do espectador. Le gai savoir quer partir do zero, distanciar-se da cinefilia para enfrentar diretamente a realidade contemporânea e desmascarar suas estruturas, de modo a alcançar uma ação estética e política. É verdade que é impossível voltar à estaca zero e atingir o estado puro da origem, como reconhece Derrida em Gramatologia, evocado diversas vezes no filme (e inspirado por Rousseau). Mas Godard, como bom dialético, reforça e reivindica apesar de tudo a primazia da imagem e do som como euidentiæ, “provas” do real. Voltar ao marco zero da imagem cinematográfica significa também voltar à fotografia: quando Émile diz “a primeira imagem, então”, é a Vista da janela em Le Gras (1826-1827) de Niepce que se vê. Godard remete a história do cinema a bem antes dos Lumière, conforme um princípio que ele desenvolverá intensamente a partir dos anos 1980. Além disso, o filme se constrói confrontando imagens fixas e imagens em movimento, explorando os interstícios entre a fotografia e o cinema. Sem conciliação possível, Godard torna sensíveis as contradições e já anuncia a lógica do “e... e...” que o vídeo virá reforçar nos anos seguintes por sua capacidade de fazer coexistirem diversas imagens numa mesma tela. Finalmente, Le gai savoir é também um filme de corpos e de gestos, rigorosamente distanciados segundo a lição de Brecht, mas ao mesmo tempo engrandecidos pela luz artificial dos projetores que reforçam a corporeidade da obscuridade, fragmentando e ampliando os corpos. De maneira semelhante, apenas a luz do sol podia trazer “a embriaguez da cura” ao “isolamento radical” feito de doença e de desespero de que falava Nietzsche (A gaia ciência, 1882). A época underground de Godard está começando.
Dario Marchiori
Produção
Apoio
Correalização
Copatrocínio
Realização
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