DOCUMENTÁRIO(S) E IDEOLOGIA(S)

Arthur Autran

O mercado cinematográfico entre nós, conforme é sabido, foi moldado e dominado completamente pelo produto estrangeiro desde o início dos anos de 1910, após o estertor do que se convencionou denominar “bela época do cinema brasileiro”, ou seja, o período entre 1907 e 1911 no qual alguns exibidores como Giuseppe Labanca e Guilherme Auler no Rio de Janeiro e Francisco Serrador em São Paulo produziram diversos filmes, possibilitando uma presença relativamente expressiva do produto nacional.

A partir da I Guerra Mundial, o mercado até ali disputado por produtos de procedência francesa, italiana, dinamarquesa e norte-americana, passou a ser dominado exclusivamente por esta última. Tal realidade, apesar de algum refluxo nas décadas de setenta e oitenta do século XX quando o produto brasileiro chegou a ocupar por volta de 30% do mercado, não sofreu alteração até hoje, no que pese a progressiva falta de importância da sala de cinema como fonte de renda, devido a outras maneiras de exibição do filme tais como a televisão – aberta e fechada –, o videocassete e o DVD; bem como pelos recursos financeiros advindos da exploração de direitos de imagem em chaveiros, copos, bonecos e todo tipo possível de bugiganga. É de se notar que, fora algumas exceções, também nestes novos tipos de mercado o produto cinematográfico brasileiro permanece marginalizado.

Ou seja, restou ao produtor brasileiro a partir da década de 1910 o rebotalho do mercado. Enfrentando todo tipo de problema para fazer filmes de ficção, que afinal de contas era o produto desejado por espectadores e pelos próprios cineastas, a realização era atravancada pela falta de capital suficiente; pela ausência de equipamentos tais como câmeras e refletores minimamente atualizados; por uma infra-estrutura inadequada em termos de laboratórios e dos tão sonhados estúdios; bem como pelo pouquíssimo know how. Os filmes eram feitos com base em toda sorte de improvisação, desde os equipamentos, passando pelos cenários e figurinos até as equipes artística e técnica.

E, como observou Maria Rita Galvão, se produzir já era difícil, mais ainda era exibir o filme pronto. Para conseguir colocá-lo junto a um bom cinema, não apenas o produtor passava muito tempo negociando, o que era péssimo devido ao capital empatado no filme, como ainda acabava aceitando condições adversas de comercialização, na qual pagava todos os custos de exibição, concordava em receber percentuais baixos na divisão da renda, e chegava mesmo por vezes a alugar a sala 1.

Evidentemente o resultado de condições tão adversas é que mesmo quando o filme de ficção conseguia exibição comercial acabava dando grande prejuízo ao produtor, inclusive porque normalmente o público já diferenciava o produto nacional do estrangeiro, considerando o primeiro de baixa qualidade, dado que o parâmetro de avaliação era o padrão imposto pelo filme norte-americano.

Percebendo ainda que de maneira difusa e pouco consciente a ocupação do mercado  pelo produto estrangeiro, os cineastas passam a buscar frestas por onde conseguissem se manter na atividade e até, quem sabe, capitalizar-se para a realização do tão sonhado filme de ficção. É na desprezada não-ficção que encontram a tal fresta, pois embora o público brasileiro tivesse o compreensível desejo de assistir a momentos de determinado jogo de futebol entre Botafogo versus Fluminense ou às imagens de algum comício político, evidentemente não havia apelo econômico suficiente para que companhias estrangeiras – mormente as norte-americanas – enviassem seus cinegrafistas para a feitura de tais registros.

Ademais, alguns destes cineastas compreendem que se o público não pagava, poder-se-ia achar outra clientela naqueles que tinham dinheiro suficiente para mandar fazer filmes a respeito de si próprios ou de seus negócios. Surgem aí os filmes de “cavação”, termo pejorativo que designava o ato do cineasta “cavar” a encomenda de uma filmagem junto a autoridades públicas – do presidente da República aos prefeitos das pequenas cidades, de ministros de Estados a vereadores, de generais aos chefes de polícia locais –, fazendeiros, industriais, líderes eclesiásticos, famílias de destaque social, etc. Possivelmente o exemplo mais eloqüente desta ligação era o Rossi Actualidades, de Gilberto Rossi, um cine-jornal que recebeu subvenção do estado de São Paulo por anos a fio.

É claro que os cineastas não pertenciam a esta elite social e política, bem ao contrário, na maioria das vezes tinham origem social humilde, sendo freqüentemente imigrantes ou filhos de imigrantes. Entretanto a necessidade e o desejo de continuar trabalhando com cinema e de se integrar à sociedade brasileira da forma como ela já se encontrava constituída falaram mais alto.

No texto “A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898-1930)”, de fundamental importância para a adequada compreensão da ideologia dos filmes documentários brasileiros realizados no período do cinema silencioso, Paulo Emílio Salles Gomes, com o seu habitual bom humor, observa que este conjunto poderia ser dividido em dois tipos básicos: o “berço esplêndido” e o “ritual do poder”. O primeiro seria relativo à tematização das belezas naturais – florestas, cachoeiras, etc – transmutando-se ao longo do tempo no registro despretensioso dos usos e costumes dos habitantes do país; enquanto o segundo articulava-se em torno do Presidente da República e dos seus atos, alargando os limites deste tipo para personalidades e fatos que se relacionassem com o poder 2.

Ampliando a definição de Paulo Emílio para o “ritual do poder”, Jean-Claude Bernardet entende que, além da temática, a definição se um filme pertence a esta tipologia é dada pelo esquema de produção dele e pela sua perspectiva 3. Portanto, filmes que mostravam o povo, mas eram financiados pela elite econômica poderiam pertencer ao “ritual do poder”.

Tendo a oportunidade de assistir, junto ao grupo de pesquisadores de história do cinema reunido desde 2002 pela Cinemateca Brasileira, a um significativo conjunto dos documentários nacionais realizados até 1930 não resta dúvida a respeito da ligação umbilical existente em termos ideológicos entre os cineastas e a elite política e social, que resulta, sobretudo, da dependência econômica anteriormente descrita.

Filmes de Antônio Campos como Caça à raposa (1913) e Fazenda S. José (1914)são exemplares, tanto pelo tipo de financiamento, quanto pelos assuntos ligados à elite social. Ademais, tratava-se de um dos melhores profissionais do cinema brasileiro do período. Dificilmente algo pode superar a empáfia grotesca expressa nas imagens de Caça à raposa, fita que registra a atividade organizada por D. Olívia Penteado evocada no título; no filme podemos ver a elite paulista vestida a caráter tanto desfilando pela cidade de São Paulo quanto na caçada propriamente dita, tudo mediado por enquadramentos marcados por ligeiras contra-plongées que exaltam o feito desta elite. Já em Fazenda São José um plano serve para exemplificar o conjunto: no jardim da fazenda todos os membros da família se divertem ao mesmo tempo, enquanto alguém rega flores, as moças pulam corda, o pai atira, etc; o peso do quadro, com suas ações múltiplas emolduradas de forma a buscar destacar todas, expressa enorme artificialidade e impostação no que deveria ser o momento de descontração da família burguesa.

Porém, é de se perguntar: houve neste período alguma produção ideologicamente orientada por uma perspectiva de esquerda? Afinal as décadas de dez e vinte do século passado foram marcadas por intensa ebulição política no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Pode-se anotar, neste sentido, a agitação política promovida pelos imigrantes anarquistas, a criação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1922, a organização sindical de vários setores de trabalhadores urbanos e movimentos grevistas objetivando a melhoria do salário e a modernização da legislação trabalhista.

Os historiadores do cinema brasileiro fizeram um algum esforço em responder positivamente tal questão. Afonso Segreto, o cinegrafista que segundo alguns historiadores teria rodado o primeiro filme no Brasil ao registrar em 1898 a Baía de Guanabara com a câmera a bordo do paquete Brésil, concentrou em torno da sua história pessoal nebulosa muitas especulações. Se Jurandyr Noronha tão somente indica que Afonso Segreto teria simpatia por “grupos anarquistas brasileiros”, sem chegar a relacionar esta opção política com o viés ideológico dos filmes 4, já Alex Viany insinua que, devido à tal simpatia, Segreto filmara comícios desta corrente política, mas sem muita comprovação e tudo aparentemente escorado no desejo e na crença do próprio Viany, ele mesmo militante comunista 5. Mais recentemente, Roberto Moura analisou de forma aprofundada as suspeitas de Viany e informa que Afonso Segreto tinha “preferências políticas ligadas à participação dos italianos no movimento operário”, fazendo alguns filmes que abordavam este movimento e chegando mesmo a filmar o túmulo do socialista Polinice Mattei quando da feitura de Círculo Operário Italiano em São Paulo (1899) 6. Moura também atribui às fitas de não-ficção sobre a revolta dos marinheiros comandada por João Cândido, como A revolta da esquadra (1910) produzida por William Auler, “simpatia pela causa popular” 7.

Ao meu ver, o fato de determinado assunto ser abordado não quer dizer que o tenha sido através de uma ótica esquerdista. Sempre existe a possibilidade das películas chegarem a possuir até mesmo uma posição contrária às causas de determinada revolta ou de um dado comício, possibilidade, aliás, grande, devido ao extremo autoritarismo da sociedade brasileira de então e à intolerância dos poderes constituídos para com quaisquer formas de manifestação de insatisfação por parte das classes subalternas.

De qualquer maneira Afonso Segreto não parece ter deixado seguidores, se é que efetivamente seus filmes chegaram a possuir uma perspectiva ideológica definida. Para além deste caso, os primeiros documentários brasileiros a adotar um viés ideológico de esquerda foram bastante tardios, datando de 1945, momento em que o PCB torna-se legalizado por breve período de tempo. Segundo Antônio Albino Canelas Rubim, o jornal comunista Tribuna Popular produziu algumas atualidades em torno dos comícios de Luís Carlos Prestes. Além disso, o cineasta Ruy Santos e o arquiteto Oscar Niemeyer  organizaram a produtora Liberdade Filmes, que realizou o  curta O comício de Prestes no Pacaembu (Ruy Santos, 1945) e o longa sobre a história do partido intitulado Vinte e quatro anos de lutas (Ruy Santos, 1947) 8.

Impõe-se a evidência, portanto, de que a maior parte da produção de não-ficção era fortemente comprometida com a elite social e política. Esta situação perdurou até os anos de 1960, quando produtores como Jean Manzon ou Primo Carbonari ocupavam as telas com seus documentários e cine-jornais encomendados por políticos, grandes empresários, famílias endinheiradas, etc.

Mas é de se registrar que nos anos de 1960, através do Cinema Novo, o documentário de viés crítico finalmente se constitui de maneira clara entre nós, a partir do trabalho de Leon Hirszman, Paulo César Saraceni, Linduarte Noronha, Joaquim Pedro de Andrade, Geraldo Sarno e Vladimir Carvalho, entre vários outros diretores. Esta vertente documentarista não buscou inspiração na tradição brasileira, por razões que nos parecem evidentes se tivermos em mente as proposições políticas esquerdistas e as propostas estéticas de cunho moderno do Cinema Novo, dialogando antes com a produção contemporânea norte-americana – os irmãos Maysles –, européia – Jean Rouch, Mario Ruspoli e Arne Suksdorff – e mesmo latino-americana – Fernando Birri.
No entanto, seria de interrogar se as classificações empregadas por Paulo Emílio Salles Gomes e retomadas parcialmente por Jean-Claude Bernardet, citadas anteriormente, de fato conseguem delimitar o quadro do documentário no período silencioso. A resposta parece ser negativa, quando observamos a produção mais detalhadamente.

Um primeiro tipo de filme que se impõe é aquele que tematiza a vida de determinada família e foi realizado por alguém ligado a ela, não por um cinegrafista especialmente contratado para isso. É o que atestam as Reminiscências da família Junqueira, filmadas por Aristides Junqueira entre 1909 e 1920 em Belo Horizonte formando uma espécie de álbum de família cinematográfico; assim como, segundo informações do pesquisador Glênio Povoas, parece ser o caso de material proveniente do Rio Grande do Sul realizado por Antônio Knuth na década de 1930 no qual se registram momentos do cotidiano daquele engenheiro de minas e dos seus entes queridos 9. Em ambos os materiais há muito menos “pompa e circunstância” em termos das vestes das pessoas, das suas posições diante da câmera, dos afazeres registrados, etc; se utilizarmos como termo de comparação fitas confeccionadas por cinegrafistas profissionais.

Outros materiais que parecem escapar àquela classificação inicial são os filmes realizados por viajantes de passagem por determinada cidade, cujo registro é bem diferente do confeccionado pelos cinegrafistas profissionais radicados ou não no lugar. Exemplares neste sentido, são as tomadas de São Paulo feitas na década de 1920 pelo japonês Hikoma Udihara, na qual bairros tranqüilos com crianças brincando contrastam com o centro agitado da metrópole, bem como se destaca a centralidade da presença feminina em vários planos, enfoques que escapam à produção tradicional de um Gilberto Rossi.

Mas ainda restaria interrogar se nos próprios filmes dos cinegrafistas profissionais não haveria frestas, por onde outros significados pudessem nos atingir. A resposta é positiva, pois o alto grau de polissemia natural na imagem em movimento como que arregimenta nossa compreensão para significados muito diferentes do desejado pelo realizador e pelo patrocinador da fita. Um exemplo dentre muitos possíveis: o cine-jornal Santa Maria Actualidades (1914), de Francisco Santos,apresenta um conjunto de planos absolutamente impressionantes de pessoas pobres, na sua maioria negras, sentadas no chão numa espécie de pátio e todas muito próximas umas das outras; apesar de certamente a intenção do realizador ser elogiar a ação da sra. Maria Bernhardt da Candelária, que nos informa o intertítulo doou um conto de réis para ajudar aqueles desafortunados, o que fica mais presente para o espectador é a força das imagens daqueles miseráveis.

Diga-se de passagem que o poder polissêmico das imagens e a dificuldade por parte dos cineastas de induzir seus espectadores a atentar para apenas tal ou qual dos vários significados possíveis ali contidos era um problema percebido pelos próprios realizadores. Daí que um filme como Revolução de 1924 (Humberto Caetano, 1924), película cujas filmagens foram autorizadas por aqueles que sufocaram a rebelião, seja repleto de intertítulos extremamente explicativos, mesmo para os padrões do cinema brasileiro da época, de forma a tentar não permitir ao espectador outra interpretação dos fatos que não a desejada pelo realizador e pelas autoridades vitoriosas.

É ainda de se ressaltar que em muitos filmes a própria inépcia do realizador colabora para a obtenção de resultados bastante inesperados. Pois se no já citado Caça à raposa há enquadramentos rigorosos particularmente na cidade, de maneira a não deixar ao espectador outra opção para o olhar além da elite paulista partindo para a caçada, já em outros títulos como o próprio Revolução de 1924 pode-se entrever num plano em que soldados passam por uma pequena cidade, a situação miserável do lugar e a indiferença da população em relação aos acontecimentos políticos.

As relativizações expostas acima sobre a produção documentária nos permitem discordar da posição de Jean-Claude Bernardet. Para o crítico, filmes atuais realizados com material de arquivo tenderiam a trabalhar tão somente no âmbito do poder, posto que o  material de base se limitaria quase totalmente a isto 10. Tal desconfiança para com este filão da produção documentária talvez explique porque em S. Paulo: sinfonia e cacofonia (1994), dirigido pelo próprio Bernardet, há enorme predominância da ficção como material de base. É como se a desconfiança do crítico para com o material não-ficcional se estendesse ao diretor, levando-o a optar por discutir como a cidade de São Paulo foi representada no cinema embasado principalmente na ficção.

A análise mais detida do conjunto da produção demonstra que ela tem escopo bem mais amplo em termos temáticos, embora, certamente, o “ritual do poder” predomine. E a remontagem de planos ou fragmentos de planos poderá ressignificar de forma acentuada estas imagens com relação ao seu sentido original. Mas para chegar a tanto será necessário previamente um trabalho encarniçado com os arquivos de imagens, no sentido de analisar tudo quanto possível: de filmes completos até restos de copião, passando por fragmentos nunca montados. Após esta análise copiosa e a correspondente anotação detalhada, é que se pode partir para a montagem buscando transformar ao máximo o viés ideológico primeiro destas imagens.

A reflexão aqui esboçada se encaminha menos na direção de filmes de montagem tais como Jango (Silvio Tendler, 1984) ou Revolução de 30 (Sylvio Back) que utilizam o material de arquivo escorando-se de forma privilegiada nas relações entre as imagens e seus referentes históricos – personalidades, lugares, fatos relevantes. Exemplo significativo do processo de construção fílmica deles é o trecho de Jango em que a locução comenta: “O Brasil entrava na era da vassoura. A vitória de Jânio Quadros nas eleições presidenciais em outubro de 1960 tornou possível para a UDN matar a sua fome de poder. Carlos Lacerda, Afonso Arinos e Magalhães Pinto foram os anfitriões da festa que converteu Jânio num udenista novo. Palmas, acenos, abraços e aplausos animaram o ritual da convenção. O Brasil estava contaminado pela febre janista”. As imagens como que comprovam as informações da locução, assim ao se mencionar Carlos Lacerda temos a sua imagem, da mesma forma que Afonso Arinos e Magalhães Pinto, todos numa recepção para Jânio Quadros, além de vários planos de pessoas aplaudindo e acenando quando isto é falado. Ou seja, as imagens de arquivo ilustram o que é dito na locução. Por vezes, também se recria a significação da imagem por meio da locução, como quando se faz referência à “fome de poder” da UDN e temos um plano de Jânio Quadros comendo com gulodice. Sem negar a importância estética, política e de interpretação histórica destas produções, entendo que trabalhar o material de arquivo de maneira menos calcada nas suas referências efetivas pode, de maneira dialética, representar questões ligadas à história de modo bem mais abrangente.

Neste sentido, experiência relevante foi a de Eugênio Puppo com o curta Amplavisão de São Paulo (2004), vídeo que retrabalha imagens provenientes do acervo de Primo Carbonari, conhecido realizador de cine-jornais. O caráter oficialesco, o ritmo monótono e os enquadramentos pobres dos filmes de origem dão lugar, através da nova montagem, da música e de interferências de computação gráfica, a uma obra que representa como poucas o vórtice da história brasileira distanciando-se em absoluto de uma compreensão na base dos “grandes homens” ou dos “grandes feitos”. Neste vídeo, ainda timidamente, emprega-se a utilização de computação gráfica de maneira a alterar o enquadramento de alguns planos pela introdução de uma animação que lembra o formato da película cinematográfica, remetendo à origem material daquelas imagens e ao mesmo tempo marcando a distância que marca sua reutilização em relação ao, digamos assim, primeiro momento.

Ao meu ver, aliás, a utilização criativa das novas tecnologias em relação ao material de arquivo é da maior relevância, especialmente quando a interferência é assumida claramente pelo realizador. Isto significa pensar estas novas possibilidades expressivas para além da “limpeza” do material ou, ao contrário, sujá-lo para torná-lo aparentemente mais antigo do que já é.

Trata-se sim de transformar o material de base até na sua textura, destarte exponenciando para o espectador o caráter fabricado de qualquer imagem, inclusive daquela considerada como “documento histórico”. No caso do cinema não-ficcional há que se combater duas ordens de senso comum: a herdada do positivismo que atribui ao documento histórico um caráter de transparência em relação ao fatos e a proveniente da atribuição ao documentário de possibilidade de acesso puro ao real.

Pesquisa estética mais radical é a de Nós que aqui estamos por vós esperamos (Marcelo Masagão, 1999). Utilizando material cinematográfico de procedências totalmente diferentes, a obra agrupa grandes temas para discutir o século XX, sem se preocupar precipuamente com cronologia ou em repertoriar fatos, bem como, ao nível da construção fílmica, em se referenciar permanentemente ao objeto que deu origem à imagem de base. Ou seja, ao contrário de grande parte dos documentários de material de arquivo, no filme em pauta muitas vezes a imagem de um conflito não se refere a um evento específico – a II Guerra Mundial ou Guerra do Vietnã, por exemplo –, mas a um conceito de guerra que realça a violência sem limites e o sofrimento provocado pela violência, conceito este alcançado eminentemente através da montagem. Em outros momentos, como na seqüência em que se alternam imagens de Fred Astaire dançando e de Garrincha driblando os joões, tais personalidade são até identificadas por créditos, mas a significação das imagens não se refere especificamente tanto aos dois artistas, mas sim ao sentido de graça e de equilíbrio. Talvez a seqüência que trabalha melhor a construção de um significado novo para as imagens é aquela referente aos processos de emancipação feminina, na qual o plano de uma mulher brincando com copos que apresentam sobreposições com imagens de outras mulheres emoldura imagens não apenas de personalidades – Josephine Baker ou Coco Chanell – e de movimentos históricos facilmente identificáveis – as sufragistas norte-americanas dos anos de 1920 -, mas toda uma série de planos de épocas variadas de mulheres e homens dançando de forma a demonstrar as mudanças das relações de ambos os gêneros com o seu corpo e com o corpo do outro.

Apesar de a maior parte dos filmes de não-ficção brasileiros realizados até 1960 ter se perdido, o que resiste ainda ao tempo ainda é pouco conhecido e estudado – tanto por pesquisadores universitários quanto pelos próprios documentaristas. Estas observações são indicações de caráter inicial visado problematizar o esquematismo na classificação do documentarismo, bem como das suas amplas possibilidades enquanto material de base para a realização de novos filmes.


1 GALVÃO, Maria Rita Galvão. Crônica do cinema paulistano. São Paulo: Ática, 1975. p. 46-62.

2 GOMES, Paulo Emílio Salles. A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898-1930). In: Paulo Emílio – Um intelectual na linha de frente. Organizado por Carlos Augusto Calil e Maria Teresa Machado. Rio de Janeiro / São Paulo: Embrafilme / Brasiliense, 1986. p. 323-330.

3 BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 26.

4 NORONHA, Jurandyr. Imigrantes no cinema brasileiro. Italianos (Parte I). Cinemin, Rio de Janeiro, n. 35, jul. ago. 1987.

5 VIANY, Alex. O cinema e a cultura brasileira. In: _____. O processo do Cinema Novo. Organizado por José Carlos Avellar. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999. p. 134.

6 MOURA, Roberto. “SEGRETO, Afonso”. In: RAMOS, Fernão e MIRANDA, Luiz Felipe (orgs.). Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Senac, 2000. p. 502.

7 MOURA, Roberto. A bela época (primórdios-1912) – Cinema carioca (1912-1930). In: RAMOS, Fernão (org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1987. p. 48.

8 RUBIM, Antônio Albino Canelas. O Partido Comunista e o cinema no Brasil. Caderno de Crítica, Rio de Janeiro, n. 5, maio 1988.

9 PÓVOAS, Glênio Nicola. Histórias do cinema gaúcho: propostas de indexação 1904-1954. Porto Alegre: tese de doutorado apresentada à PUCRS, 2005. p. 160-163.

10 BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 251.

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