VESTÍGIOS DO PASSADO
Eduardo Escorel
Na sua prática profissional, o cineasta tanto pode produzir quanto utilizar documentos audiovisuais, comumente identificados como imagens de arquivo ou, simplesmente, material de arquivo. Nos dois casos, o dos registros filmados que vêm a adquirir valor documental e o do uso de filmagens feitas por terceiros, o realizador enfrenta vicissitudes familiares a quem procura cruzar cinema e história na realização de filmes documentários.
13 de março de 1964. Uma equipe de três pessoas filma o Comício da Central do Brasil em que o presidente João Goulart anuncia as reformas de base pouco antes de ser deposto.
Onde estarão essas imagens? As vimos, pela última vez, em 1970. Desde então, seu paradeiro é um mistério.
Janeiro de 1966. Em São Luís, no Maranhão, outra pequena equipe filma o governador José Sarney no dia da sua posse, discursando de um palanque armado na praça pública tomada pela multidão.
Onde estará o negativo original dessas imagens? Teria sido parcialmente destruído e reutilizado em outro filme?
Março de 1968. Um câmera solitário filma a procissão fúnebre e o enterro do estudante Edson Luís, morto a tiros pela polícia no centro do Rio de Janeiro - marco inicial das manifestações de protesto ocorridas naquele ano conturbado.
Onde estarão essas imagens? Teriam sido enviadas para o exterior do País na tentativa de evitar que fossem apreendidas pela polícia?
Esses três exemplos e a mesma pergunta, sempre sem resposta precisa, bastam para mostrar a precariedade que há, entre nós, na preservação de um repertório audiovisual que possa servir de referência à memória coletiva e à realização de documentários históricos.
A água, o ar, a terra e o fogo conspiram contra a preservação dos registros visuais e sonoros. Mas à ação predatória dos elementos se soma a dos seres humanos - o despreparo de indivíduos e instituições, o descaso da sociedade e a insensibilidade dos governos.
O suporte material desses registros, sendo perecível por natureza, em alguns casos é sujeito à autocombustão! A guarda descuidada, o armazenamento inadequado, contribuem para a grande quantidade de perdas havida desde os primórdios do cinema. Mesmo depois da importância da preservação ter sido reconhecida em um círculo restrito, incêndios, alagamentos, temperatura ambiente elevada, umidade do ar e bolor continuaram dilapidando o acervo brasileiro de imagens e sons. Do que deixou de ser vendido a peso para servir de matéria-prima na fabricação de esmalte, grande parte não escapou da chamada síndrome de vinagre – odor característico que indica um processo irreversível de deterioração do suporte de acetato.
Esforços isolados não foram capazes de impedir essa catástrofe continuada. E a passagem da predominância da imagem fotográfica para a eletromagnética agravou as perdas e a má qualidade técnica do reduzido acervo que vem sendo preservado.
Assim, um projeto de rever a história republicana brasileira através do cinema, parece, de ante-mão, condenado ao fracasso. As lacunas superam, de longe, as imagens ainda existentes. O que resta são apenas tênues vestígios do passado cuja sobrevivência, muitas vezes quase miraculosa, não temos como explicar.
Em 1965, pudemos ver, pela primeira vez, as imagens de Lampião, Maria Bonita e seu bando de cangaceiros, filmadas em 1936 pelo mascate libanês Benjamin Abrahão. A verdade é que não se deu, na época, a devida atenção à excepcionalidade daquelas cenas, apreendidas em 1937 sob o pretexto de atentarem contra “os foros da nossa nacionalidade”. O fotógrafo Adhemar Albuquerque teria escondido e vendido uma cópia ao produtor e diretor Alexandre Wulfes. De alguma forma, essas imagens chegaram às mãos de Paulo Gil Soares que as incluiu no seu Memória do cangaço. Um longo caminho, marcado por lances imprevistos e detalhes ainda desconhecidos, foi percorrido até que aquele registro filmado encontrasse guarida na Cinemateca Brasileira, onde está depositado hoje.
De maneira geral, no entanto, o desfecho desses percursos acidentados costuma ser menos feliz e, muitas vezes, imagens com a mesma origem têm destinos diversos.
Geraldo Sarno conta que quando passou com Thomaz Farkas por Águas Belas, em Pernambuco, em 1969, viu, na delegacia da cidade, rolos de filme 35mm, todos velados. Segundo o delegado, teriam pertencido a Benjamin Abrahão e haviam sido trazidos junto com o seu cadáver quando foi assassinado em 1938. Seriam apenas negativos virgens? Haveria imagens impressas naqueles filmes? Que imagens seriam essas? Passados trinta anos, continuavam ali se deteriorando, perdidas para sempre.
Em outros casos, sem que se saiba como, o decurso de períodos ainda maiores não impediu que cópias de certos filmes fossem preservadas.
Foi o que ocorreu com as imagens do Padre Cícero a que recorremos em 1970. Aceitamos sua existência, na época, sem nos preocuparmos em saber quem as filmara, nem como haviam sido preservadas. Pareceu-nos perfeitamente natural que estivessem disponíveis no Instituto Nacional de Cinema e que, graças a elas, nos fosse possível traçar um paralelo entre os ritos do poder dos anos 1920 e do final dos anos 1960. Sabemos hoje que essas imagens mostram o Padre Cícero inaugurando sua própria estátua de bronze numa praça de Juazeiro do Norte, no Ceará, e teriam sido filmadas pela Aba Film de Adhemar Albuquerque, a 11 de janeiro de 1925. Documento visual precioso, preservado durante quarenta anos numa instituição pública, que resistiu à temperatura tropical apesar de ter sido conservado em condições distantes das ideais.
Muitas vezes a preservação de uma filmagem valiosa deve-se ao mero acaso. Um diretor dá a um colega um rolo de filme que recebera de um produtor. Entregue o material à guarda da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, assegura-se, assim, a preservação do que está identificado na própria película como sendo “A grande marcha pliniana”, manifestação integralista no centro do Rio de Janeiro, ocorrida provavelmente em 1937. Lá estão Plínio Salgado, líderes e militantes, no momento em que, acreditando estar às portas do poder, encontravam-se, na verdade, às vésperas da derrocada.
Quem terá filmado essas imagens? Terão sido exibidas em público alguma vez? Como foram obtidas pelo produtor e o quê o levou a entregá-las ao diretor? É provável que nunca venhamos a saber as respostas a essas questões. De todo modo, casos fortuitos e de origem imprecisa como esse, mal ou bem, contribuíram para que a perda da nossa memória audiovisual não fosse completa.
Atuando em sentido contrário, porém, soma-se à aniquilação predominante o trabalho de sapa de diversas espécies de predadores, usualmente com propósitos comerciais. Uns consideram normal se apropriarem de acervos de empresas falidas; outros não se envergonham de subtrair bens públicos para formar acervos particulares.
Ficam delineados, dessa forma, alguns dos fatores que configuram o quadro geral de precariedades que a Cinemateca Brasileira vem enfrentando desde o seu surgimento no final de 1956, com vinte anos de atraso em relação às instituições congêneres, européias e norte-americanas. Apesar de ter iniciado suas atividades quando o grande mal já estava feito e de portar como trágica marca de nascença o incêndio que destruiu, em janeiro de 1957, grande parte do seu acervo, a Cinemateca Brasileira foi responsável, nas décadas seguintes, pela preservação e pela restauração do principal repertório de imagens cinematográficas existentes no Brasil. Mesmo assim, tendo que lidar com a continuada desatenção dos governantes, nosso centro primordial de referência de documentação filmada ainda permanece distante do padrão de excelência que suas atribuições requerem e que seus dirigentes e usuários desejam.
Já na década de 1980, a Embrafilme construiu uma modesta reserva técnica onde foi depositado o acervo originário do Instituto Nacional de Cinema. As instituições de referência do setor, a Cinemateca Brasileira, e, em segundo plano, a Cinemateca do Museu de Arte Moderna, ampliaram seus acervos e procuraram aperfeiçoar seus métodos de trabalho. Apesar da relativa evolução experimentada, o quadro geral se agravara, continuando a ser desalentador.
Ao iniciarmos, em 1990, o que viria a ser uma série sobre a disputa pelo poder inaugurada com a Revolução de 1930, passamos a contar com o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, criado em 1973. Tendo estabelecido um alto padrão de excelência em sua área de atuação e constituído suporte decisivo para o cinema documentário de caráter histórico, quem trabalha com esse gênero de filme não pode deixar de lamentar que o CPDOC não tenha se proposto a atuar também, como uma cinemateca, na preservação e no restauro de imagens filmadas em película ou gravadas em fita magnética. A opção por um projeto de âmbito mais modesto, determinada possivelmente por restrições orçamentárias, deve ter se beneficiado das vantagens dessa prudência. Ao mesmo tempo, impôs limites notórios a quem pretenda recorrer ao CPDOC como fonte de pesquisa iconográfica exaustiva sobre a história brasileira contemporânea. Reconheça-se, no entanto, que um acervo formado pela doação de arquivos particulares não poderia mesmo ter tal ambição de abrangência.
Além da produção intelectual dos pesquisadores do CPDOC ter se tornado referência obrigatória, eles próprios passaram a colaborar na realização de filmes documentários através de depoimentos e da elaboração de argumentos e roteiros. Foi o que ocorreu, em 1990, na realização de 1930 – Tempo de revolução, para o qual contamos com a consultoria histórica de Regina da Luz Moreira, pesquisadora da instituição. O Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, por sua vez, publicado em 1984, passou a ser a fonte de consulta primordial dessa área de conhecimento e pesquisa. Finalmente, o acervo fotográfico viria a suprir, ainda que através da imagem estática, algumas das lacunas da nossa memória cinematográfica.
Ao lado dessas contribuições notáveis, é uma lástima que o registro, filmado ou gravado em vídeo, da imagem dos depoentes não tenha sido incluído no programa de História Oral, transformando-o num programa de História Oral & Visual. Considerando a penúria do acervo brasileiro de imagens em movimento, o registro visual das centenas de testemunhos colhidos teria constituído um acervo de valor inestimável. Tendo prevalecido o mesmo procedimento nos depoimentos mais recentes que compõem a trilogia da memória militar (Visões do golpe, Os anos de chumbo e A volta aos quartéis ), fomos impedidos, por exemplo, de examinar a expressão do rosto do general Carlos Alberto da Fontoura, chefe do Serviço Nacional de Informações de 1969 a 1974, no momento em que afirmou nunca ter tido “uma prova de tortura” ( Os anos de chumbo, p. 97 ).
Terá sido apenas por falta de recursos que não foram feitas essas filmagens ou gravações em vídeo? Essa possibilidade terá sido considerada? Ou terá predominado um certo menosprezo pelo valor do documento visual que parece haver por parte de alguns historiadores? É isso que poderia sugerir a coletânea de fotografias A revolução de 1930 e seus antecedentes, publicada pelo CPDOC em 1980.
Reunindo grande número de imagens do seu acervo, além de algumas de outras fontes, o álbum se limita a apresentar textos breves introdutórios aos capítulos e legendas descrevendo as fotografias. A importância da documentação visual apresentada, até então pouco conhecida em seu conjunto, não nos deve impedir, porém, de questionar a possibilidade dessas imagens falarem por si mesmas. Além do local, da data e da identificação dos fotografados, teria sido necessário acentuar o que cada uma dessas fotografias revela através do enquadramento escolhido, da exposição, do diálogo silencioso dos fotografados com a câmera e entre eles próprios? O que essas imagens trazem? Analisadas a fundo, o que elas realmente mostram?
Para uma análise desse teor, uma das fotografias mais interessantes a considerar teria sido a do Arquivo Pedro Ernesto Batista, publicada à página 73. Segundo a legenda, foi tirada em Gaiba, Bolívia, em 1927, e nela estão retratados Cordeiro de Farias, abraçado a um menino, moradores da região, Carlos Hansen, engenheiro da Bolívia Concessions e, na extrema direita, Luis Carlos Prestes, de braços cruzados. O que faltou mencionar foi o papel representado por essa fotografia na fabricação do mito do Cavaleiro da Esperança. Cordeiro de Farias com o corpo relaxado é o único, além de um bebê de colo, que não encara a câmera; Prestes, além dos braços cruzados, apoia as pernas com firmeza, tem o corpo retesado, e olha diretamente para a lente - é a imagem da determinação. Alguém, com apurado senso de percepção, isolou sua figura do resto da fotografia, fazendo surgir a representação ideal do líder messiânico, representação essa que passou a circular como um santinho, ora contra um fundo branco como se estivesse superposta a uma nuvem, ora contra um fundo escuro. E essa passaria a ser, desde então, a principal fonte de referência dos ilustradores para representar o Cavaleiro da Esperança.
Manipulações dessa espécie indicam o perigo de tomar a imagem pela comprovação dos fatos. Por estar sujeita a toda espécie de adulteração, é um truísmo dizer que a imagem não pode ser tomada como a reprodução da realidade. É célebre o caso da tomada do Palácio de Inverno, encenada em 1927 por Eisenstein para seu filme Outubro, usada regularmente ainda hoje como se fosse um registro jornalístico filmado em outubro de 1917.
Menos notório, mas não menos instrutivo, é o caso das mais antigas imagens de uma campanha presidencial no Brasil. Nesse filme, feito em outubro de 1921, vemos o candidato Artur Bernardes chegando ao Rio de Janeiro para apresentar sua plataforma política na capital federal, praxe da República Velha. Após recepção festiva, promovida por seus correligionários, com faixas de boas vindas estendidas na estação, está registrado o que parece ser um cortejo triunfal pelo centro da cidade. Na verdade, tem-se notícia de que, ao entrar na avenida Rio Branco, Artur Bernardes foi hostilizado pela multidão em sinal de protesto pelas ofensas aos militares contidas nas célebres cartas forjadas atribuídas a ele, publicadas dias antes pelo Correio da Manhã. Evidencia-se, dessa forma, a discrepância notável que pode existir entre o relato dos cronistas e o que inferimos do registro filmado.
Mais prosaica e deliberadamente falsa foi a transformação de Getúlio Vargas em um exímio golfista, graças a artifícios da montagem. Além de filmá-lo jogando, o câmera encarregado de glorificar sua figura teria recebido instruções para filmar, também, as tacadas de um grande jogador. Reunidas com o canhestro desempenho do ditador, essas cenas fizeram a platéia aplaudir, convencida de que entre as supostas virtudes de Vargas, decantadas pela propaganda do Estado Novo, estava também a de ser um excelente esportista.
Outras armadilhas que comprometem a confiabilidade de documentos filmados surgem na forma de imagens resultantes de uma encenação deliberada que pretende se passar por registro documental. Por mais evidentes e mal feitas que sejam, essas dissimulações costumam ser usadas livremente como se o responsável pela filmagem não tivesse interferido e orientado o que se passou diante da câmera. O exemplo mais conhecido do gênero, no cinema brasileiro, é o de Pátria redimida, realizado por João Batista Groff. Além dos registros de notável valor documental do movimento militar de outubro de 1930, Groff não hesitou em encenar combates que nunca ocorreram com a intenção de assegurar o sucesso do seu filme.
Já em 1932, quando houve mortos e feridos na guerra civil entre São Paulo e o Governo Provisório de Getúlio Vargas, o cinegrafista que filmou as tropas mineiras na serra da Mantiqueira, não satisfeito em reencenar o tiroteio e a movimentação dos soldados, criou pequenos quadros cômicos em que os mineiros ridicularizam a ameaça de bombardeio pelos paulistas e outro em que fingem terem sido atingidos nas trincheiras.
Sendo pequeno o número de filmes preservados e muitas vezes questionável seu valor documental, há ainda a considerar que as filmagens, encomendadas ou não, eram feitas quase sempre para agradar quem podia pagar pelo serviço. Grande parte do restrito material existente, portanto, além de exigir um olhar atento para ser decifrado, tem também um viés de classe, trazendo, como freqüente marca de origem, o propósito de glorificar a classe dominante e os donos do poder. Alguns filmes, cuja análise fugiria do propósito deste texto, não se enquadram nessa caracterização. É o caso de No país das amazonas, feito por Silvino Santos para ser exibido na Exposição da Independência, inaugurada em 1922, e da vasta filmografia do major Luiz Thomás Reis, documentando a atividade de Cândido Rondon a partir de 1912.
Do plano fugaz da visita do presidente Campos Sales a Buenos Aires, em 1900, à visita aos Estados Unidos, em junho de 1930, do presidente eleito Julio Prestes; da visita ao Brasil do ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt, em 1913, à visita do futuro presidente dos Estados Unidos, Herbert Hoover, em 1928, o que existe no repertório de imagens filmadas referentes ao Brasil é, em grande medida, uma sucessão de visitas presidenciais e de monarcas estrangeiros. Até o surgimento em 1938 do Cine Jornal Brasileiro, produzido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, essa é uma das principais temáticas das filmagens que incluem também fazendas de café, vistas do Rio de Janeiro, filmes “de família”, campanhas políticas, pioneiros da aviação e, naturalmente, desfiles de miss, algum futebol e muito carnaval. São raras filmagens como a da Fábrica Votorantim, em que se pode ver o ambiente fabril e o trabalho dos operários na década de 1920. Fora isso, algumas imagens de grande interesse ainda podem ser encontradas em escassos arquivos familiares, de empresas privadas e no exterior, principalmente nos Estados Unidos, onde o caráter jornalístico de muitos dos registros os diferenciam nitidamente do que foi produzido no Brasil, por encomenda, na mesma época. Que nunca se tenha feito um projeto para tornar essas imagens existentes no exterior mais acessíveis aos brasileiros é uma constatação para a qual não parece haver justificativa razoável.
Entre os arquivos familiares existentes, um dos mais notáveis é o da família Salles Penteado, de São Paulo. Ao voltar dos Estados Unidos, graduado em engenharia elétrica, no final da década de 1920, Jaime de Salles Penteado trouxe consigo uma câmera de filmar 16mm. Filho do coronel Antonio Leite Penteado, fazendeiro de café em Sertãozinho, ele fez muito mais do que um álbum de família filmado. Demonstrou instinto de grande repórter ao estar com sua câmera, em várias ocasiões, no lugar certo, na hora certa. Graças a ele, podemos ver hoje, entre outras cenas de grande interesse, um comício do Partido Democrático no interior de São Paulo nos anos 1920; a multidão com a placa de identificação da delegacia do Cambuci, carregada como troféu da vitória pelas ruas do centro de São Paulo em outubro de 1930; as manifestações e quebra-quebras no centro de São Paulo em julho de 1932. Pela amostra deixada por Jaime de Salles Penteado, é possível ter uma idéia do valioso acervo de imagens que existiu e que foi perdido para sempre.
A influência do poder econômico na formação de um repertório visual de referência pode ser atestada, ainda, comparando as campanhas presidenciais de Armando de Sales Oliveira e de José Américo de Almeida. Deste último, chamado pela imprensa paulista de “candidato pobre”, não conhecemos uma única imagem filmada na campanha, apesar de se tratar, supostamente, do candidato oficial do governo federal na eleição prevista para janeiro de 1938. Já do ex-governador de São Paulo, chamada por sua riqueza de “campanha americana”, temos farto material de excelente qualidade fotográfica em perfeito estado de conservação, preservado por uma empresa privada. O apoio financeiro que Armando de Sales teria recebido de empresas e bancos estrangeiros, além do Instituto de Café de São Paulo, teria propiciado, entre outros luxos, o de contratar profissionais competentes para filmar os eventos da sua campanha. Comparado a Getúlio Vargas, Armando de Sales é superior em ao menos um quesito: o do número de discursos filmados nos anos de 1930, com imagem e som sincronizados, de que ainda existem cópias. Há alguns do político paulista, enquanto do gaúcho parece não haver nenhum. Pois até mesmo nas imagens do juramento à Constituição, em 1934, o som e a imagem de Vargas não estão sincronizados. Essa talvez tenha sido a única disputa entre os dois no período anterior à existência do DIP, vencida por Armando de Sales Oliveira: a do legado que deixou para servir de referência à memória audiovisual.
No caso do acervo do CPDOC, esse viés da classe dominante também resulta privilegiado. Os arquivos pessoais que a instituição se propõem receber são, de forma geral, apanágio das elites e o ato de doá-los a uma instituição de pesquisa pressupõe a esperança de glorificação póstuma. Assim, o que resulta é um conjunto de documentos da maior importância, mas forçosamente parcial e incompleto, circunscrito a um universo limitado de atores políticos. Mais uma vez, frustra-se a expectativa, talvez descabida, de quem busca no CPDOC um thesaurus exaustivo. Foi o que pudemos constatar quando lidamos com o arquivo então recém-incorporado de Ulisses Guimarães, em 1993. Para reconstituir a trajetória biográfica e política de Ulisses, contamos com a valiosa colaboração de Dulce Pandolfi, pesquisadora do CPDOC, mas fomos obrigados a recorrer em proporção significativamente maior a outros acervos para reunir as imagens e gravações de áudio que nos eram necessárias.
Pelos mesmos motivos referidos acima, não é no acervo do CPDOC que se pode encontrar parte significativa da documentação visual existente a respeito da guerra civil de 1932 e dos levantes de novembro de 1935. E é a iniciativas privadas que devemos a existência, entre outros, de depoimentos, filmados ou gravados em vídeo, de Octávio Brandão, José Américo de Almeida e Luis Carlos Prestes.
Em projetos da última década, particularmente Saudades do Brasil – A era JK, de 1992, e Estado Novo – A construção de uma imagem, de 1997, o CPDOC deu orientação diversa à que prevalecera em 1980, quando da publicação de A revolução de 1930 e seus antecedentes, conforme assinalamos acima. Recorrendo, em Saudades do Brasil, ao cinema, ao vídeo, à música e ao design, as fotográfias puderam ser contextualizadas, permitindo uma apreensão da imagem mais completa do que ela por si só evidencia. Já no caso de Estado Novo – A construção de uma imagem, o próprio título indicava a percepção de que os registros fotográficos precisavam ser decodificados para poderem ser compreendidos.
Escassas, duvidosas, parciais e incompletas, ainda assim imagens documentais de arquivo têm valor inestimável por assegurarem a existência de uma memória visual. Sem elas o âmbito da representação figurativa do passado ficaria muito restrito; graças a elas é possível criar referências iconográficas concretas que, somadas à informação verbal e escrita, aumentam nossa capacidade de compreensão histórica. Até mesmo encenações explícitas podem servir de matéria-prima para o cinema documentário, desde que não se tente fazer o que é ficcional passar por realidade. A desqualificação do registro audiovisual como fonte de conhecimento incorre no equívoco de não reconhecer que ele vale tanto quanto qualquer outra fonte, primária ou não. É preciso apenas saber ler, ou melhor, ver e não tomar o que vemos e ouvimos pelo seu valor de face.
Admitidas suas limitações, é impossível negar a força do testemunho que pode ser dado por imagens em movimento. Quando George Stevens, servindo no exército dos Estados Unidos, entrou com uma câmera nos campos de extermínio no final da Segunda Guerra Mundial, as cenas que filmou contribuíram para o fracasso do projeto nazista de apagar a memória do holocausto. O extraordinário impacto daquele testemunho visual, exibido em cine-jornais a partir de abril de 1945, teve influência decisiva para impedir que se concretizasse a previsão cínica dos SS, relatada por Primo Levi, de que, fosse qual fosse o desfecho da Guerra, o exército nazista seria vitorioso pois as provas do que ocorrera seriam destruídas; nenhum dos prisioneiros sobreviveria para contar a história e mesmo que houvesse algum sobrevivente, ninguém acreditaria no seu relato. As imagens de George Stevens, e de outros cinegrafistas, ajudaram a impedir a consumação de mais essa atrocidade – a dos nazistas se tornarem detentores exclusivos da história do holocausto.
Não havendo maneira de deter por completo a deterioração provocada pela ação do tempo, nem de eliminar a incidência do acaso na preservação de sons e imagens, retardar os efeitos nocivos do primeiro e reduzir a ocorrência desse último é tarefa de instituições especializadas como a Cinemateca Brasileira. Para tanto, elas precisam receber suporte financeiro proporcional às suas altas responsabilidades, o que não ocorreu no caso da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que se viu obrigada a deixar de preservar matrizes em 2002, depois de 45 anos de atuação nessa área. Com a transferência de parte do acervo da Cinemateca do MAM para o Arquivo Nacional, resta comprovar se essa tradicional instituição federal terá os meios necessários para cumprir a tarefa a que se propôs. Ou se, ao contrário, teremos regredido, salvo a atuação da Cinemateca Brasileira, ao tempo em que predominavam depósitos de filmes no lugar de centros efetivos de preservação e restauro. O padrão de excelência alcançado pelo CPDOC e, mais recentemente, pelo Instituto Moreira Salles no trato de fotografias é a meta a almejar para os acervos de filmes e gravações em video do País.
Mesmo quase perdido o passado e o presente estando em condição precária, persiste o desafio de assegurar a sobrevivência do acervo brasileiro de imagens em movimento. Sem o quê, em face da produção maciça e ininterrupta de imagens, em ritmo crescente e nunca antes visto, daqui a cinqüenta anos será difícil saber qual a feição do início do século XXI. Para que as futuras gerações não tenham a mesma dificuldade dos seus antepassados, é preciso resolver os impasses que conspiram contra a preservação da nossa face. Não se trata apenas de preservar e restaurar mas também de enriquecer continuamente o patrimônio audiovisual, através da criação e do respeito ao depósito legal que assegure a preservação de pelo menos uma cópia de todos os filmes brasileiros e estrangeiros exibidos no Brasil. Será razoável, como ocorreu em 2002, destinar à Cinemateca Brasileira recursos equivalentes a menos de 4% do montante captado através das leis de incentivo fiscal pelos filmes brasileiros lançados nesse ano? Alocar recursos públicos para produzir sem que esteja assegurada a preservação do que é produzido, equivale a queimar dinheiro, ato criminoso passível de detenção por um período de seis meses a três anos, conforme disposto no inciso IV, artigo 163, do Código Penal.
Não é mais admissível haver qualquer dúvida quanto ao interesse que “terão para os brasileiros do ano 2357 a imagem e a voz de Getúlio Vargas prestando juramento a Constituições, as passeatas de Plínio Salgado, os comícios de Luís Carlos Prestes, as vistas de São Paulo ou da Central do Brasil [...]”, questão que angustiava Paulo Emilio Sales Gomes em 1957. Graças a ele, e a alguns outros abnegados, essas imagens chegaram até nós. E quanto às imagens mais recentes? Em que estado estará o registro visual e sonoro do discurso de posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva daqui a 350 anos? Em qual instituição essa imagem poderá ser vista em bom estado de conservação no ano de 2357?