A MONTAGEM DE UM PAÍS

Eugênio Puppo

Com o objetivo de fazer meu primeiro documentário de longa-metragem, a partir de imagens de arquivo, em junho de 2005 comecei a assistir sistematicamente aos mais de 15 mil rolos de filme do acervo do cinegrafista Primo Carbonari.

Nascido em São Paulo, em 1920, Carbonari trabalhou como fotógrafo lambe-lambe e em laboratórios fotográficos até se firmar como cinegrafista. Aprendeu o ofício com o chamado cinema de “cavação” (epíteto pejorativo para designar o cinema amparado na atividade de “cavar” filmagens encomendadas por políticos, fazendeiros, industriais etc.), embora também tenha filmado pequenos documentários, geralmente com o intuito de divulgar empresas, obras do governo ou campanhas políticas, e realizado docudramas de longametragem, entre eles A morte por 500 milhões (Antônio Orelana, 1965), uma curiosa reconstituição de um assalto a banco ocorrido em São Paulo, em 1965.

A maior parte do acervo de Carbonari, no entanto, é composta dos seus famosos cinejornais, que eram chamados de Notícias: feitos especialmente para o cinema e em geral exibidos antes do filme comercial, os noticiários tinham seis ou sete assuntos variados, oito minutos de duração e uma locução que substituía o som direto. O primeiro deles surgiu em 1954; a partir de 1957, Carbonari começou a produzir também o Notícias em Amplavisão, em que usava uma nova lente anamórfica, que ampliava horizontalmente o quadro da imagem, como no Cinemascope. O Notícias nº 216 (1960), por exemplo, trazia os seguintes assuntos: visita do presidente dos Estados Unidos ao Brasil, Carnaval no Rio de Janeiro, inauguração de Brasília, campanha presidencial de Jânio Quadros, rompimento de açude em Orós, casamento de Dirce Quadros, jogo de tênis e a corrida automobilística Mil Milhas Brasileiras.

A análise desse acervo impressionante nos permite identificar claramente um modo particular de representar o Brasil, não só no aspecto político, como também na representação da cultura, da natureza, da sociedade. Carbonari desejava se tornar um dos mais bem-sucedidos documentaristas brasileiros e para tanto dedicou-se com afinco à sua produtora, investindo em diversas frentes, com o objetivo de mostrar um Brasil diferente, mas muitas vezes idealizado.

Não era raro vê-lo enaltecer personalidades políticas extremamente controversas, como Adhemar de Barros, Jânio Quadros e Paulo Maluf, ou os inúmeros desfiles grandiosos encabeçados pelos militares. O próprio golpe de 1964 era narrado por Carbonari como uma revolução pela democracia e pelo povo. No Notícias nº 1000, de 1974, podemos ouvir na locução: “Milhares de pessoas vêm se juntar às que já se encontram na capital do país para assistir à posse do general Ernesto Geisel [...] quarto presidente eleito pela Revolução de 64 [...]. Emilio Medici, agora ex-presidente, desce a rampa do Planalto com a consciência tranqüila. Cumpriu seu dever para com o povo. Seu governo foi aberto ao diálogo franco com todos. Foram cinco anos dedicados à nação que nele confiou [...]. Parabéns, presidente Geisel. Parabéns, Brasil”.

Esse entusiasmo em relação a um “projeto nacional”, muitas vezes transmitido pela narração de forma exacerbada, não estava presente apenas em assuntos ligados à política. Alguns trechos, analisados sob a ótica atual, chegam a adquirir um tom rebuscado, como é o caso da locução do Notícias nº 1246, de 1985, sobre a cidade de Porto Seguro: “Este é o monte Pascoal, primeira porção de terra avistada pela esquadra de Pedro Álvares Cabral, em 22 de abril de 1500. A seus pés está erguida Porto Seguro [...] o mais puro relicário do descobrimento do Brasil, conservando documentados os primeiros momentos de nossa gloriosa história. Porto Seguro foi também a centelha que fez surgir o Brasil católico, aliás a maior nação católica do mundo contemporâneo. [...] Região fadada pela natureza para um grande futuro, desenvolveu-se devido às riquezas naturais, as plantações de café e cacau e outros cereais. [...] Feliz é o povo que Cristo reuniu à sombra da Cruz. E nós, brasileiros, nascemos sob esse signo santo, por ele chegaremos ao nosso grande destino. E Porto Seguro foi o marco inicial”.

Em eventos históricos ou lançamentos de livros de autores pouco conhecidos, Carbonari era presença constante nos próprios filmes, e sua aparição era muitas vezes destacada pela locução. Tamanha exposição provavelmente fazia com que obtivesse cada vez mais trabalhos — a Primo Carbonari Produções Cinematográficas empregava muita gente e precisava seguir adiante.

Mas qual era a verdadeira intenção de Carbonari? Por que ele tomava determinadas posições? Será que era crítico a respeito do próprio trabalho? Ou, como qualquer empresário, queria apenas ganhar e estar no poder? Nesta revisão de seu trabalho, também será preciso considerar o caráter oficial de seus filmes, a proximidade com os militares e a postura pouco crítica diante da realidade brasileira.

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